É com um imenso júbilo que a FASBAM lança o vol. 5, Nº 10, de Basilíade – Revista de Filosofia, correspondente ao período de julho-dezembro de 2023 e cujo dossiê se intitula: Metafísica: o ser e o ente. (Clique aqui para acessá-lo).
Embora o termo metafísica esteja indissoluvelmente ligado a Aristóteles, pelo menos a partir da edição das obras do Estagirita efetuada por Andrônico de Rodes, no século I a.C., ele se tornou, em toda a tradição filosófica, sinônimo da indagação em torno dos entes e, consequentemente, do Ser. Efetivamente, esta é uma problemática que, já com os Pré-Socráticos, despontou de maneira mais especificamente filosófica na medida em que o questionamento fundamental que eles se faziam girava em torno de saber o que é que finalmente permanece apesar de todas as transformações que se verificam no mundo dos fenômenos? Deve haver algo – assim ponderavam os Pré-Socráticos – irredutível e derradeiro que permanece quando tudo o mais perece ou, simplesmente, renasce e se transforma. Este algo era metaforicamente expresso pelas palavras agueros (que não envelhece) e athánatos (imortal), usadas pela poesia épica para marcar a diferença que separava os deuses dos homens.
De fato, a concepção antropológica que marcou a cultura arcaica helênica considerava os deuses não somente como seres imortais (athánatoi), mas também, ou por isto mesmo, bem-aventurados (eudaimones), porquanto eles não eram afetados pelas vicissitudes da existência. Quanto aos seres humanos, eram eles vistos como efêmeros (ephémeroi), isto é, seres de um só dia e, consequentemente, passageiros, mutáveis, instáveis e, logo, infelizes (talaíporoi). De acordo com John Burnet, os termos agueros e athánatos, que foram empregados por Anaximandro, se encontram também em um fragmento atribuído a Eurípides e associados ao conceito de physis, erroneamente traduzido por natureza. Ademais, sustenta Burnet, a ciência jônica fora introduzida em Atenas por Anaxágoras por volta do tempo em que nasceu Eurípedes (480 a.C.). De resto, existem evidentes indícios da influência dessa ciência sobre o poeta trágico e é curioso o fato de que, num fragmento que descreve a felicidade de uma vida devotada à pesquisa científica (ιστορια), Eurípedes também se utilize dos epítetos agueros e athánatos, que Anaximandro havia aplicado àquele estofo primordial a que depois se deram os nomes de substância, princípio, elementos, essência etc.
Se, portanto, não se pode examinar a natureza do Ser entre os Pré-Socráticos sem se levarem em consideração os aportes da mitologia, da poesia, da cosmologia e da religião, dos quais eles são tributários, com mais razão ainda é impossível pensar o Ser durante aquela fase ulterior do período clássico – dominada por Sócrates, os Sofistas, Platão e Aristóteles – sem levar em conta todo o passado filosófico que fora gestado, desenvolvido e enriquecido pelos Pré-Socráticos. Neste sentido, é lícito também afirmar que as transformações e reinterpretações que marcaram o pensamento ocidental referente ao Ser reconduzem, direta ou indiretamente, explícita ou implicitamente, à filosofia grega e, mais precisamente, àquela filosofia que nasceu no período clássico e, de certo modo também, no período arcaico.
Pensando, pois, nas diferentes vicissitudes, transformações e releituras pelas quais passaram as variadas concepções da metafísica em torno dos entes e do Ser, a Revista Basilíade apresenta os textos de diversos autores que contribuíram para a materialização do presente dossiê. Deste modo:
O primeiro artigo tem como autor Bruno Fleck da Silva e, como título, Em Si ôntico: individuação e pessoa na Ontopsicologia. Neste texto, o autor se baseia na perspectiva desenvolvida por Antônio Meneghetti em sua vasta bibliografia e na práxis empírica da Ontopsicologia, movimento por ele fundado na Itália no fim dos anos sessenta. Segundo o autor, a Ontopsicologia responde ao problema universal da noção de sujeito pela noção de pessoa, expressa, a partir da tradição aristotélica, na singular categoria de individuação: o Em Si ôntico. Esta, por sua vez, é o critério epistêmico da operatividade da Escola Ontopsicológica.
O segundo artigo, de autoria de Carlos Eduardo de Carvalho Vargas e de Clodoaldo da Luz, tem como título: Entre o ser finito e o ser eterno: Edith Stein e as noções tomasianas de ser e eternidade. Segundo os autores, depois da sua passagem para a fé católica, Edith Stein reformulou suas concepções filosóficas incorporando conceitos tomasianos no seu próprio pensamento. Neste artigo, os autores se propõem elucidar como a filósofa abordou as questões acerca da eternidade do ser e da criação dos entes, comparando-as com a concepção original de Tomás de Aquino e mostrando como esse diálogo entre os pensamentos medievais e contemporâneos foi desenvolvido na sua obra: Ser finito e ser eterno: Ensaio de uma ascensão ao sentido do ser.
O terceiro artigo, intitulado, A filosofia perene tomista e sua vitalidade: A metafísica do ser como desafio intelectual ao (não) pensar na modernidade, tem como autores Jefferson da Silva e Marcius Tadeu Maciel Nahur. O seu objetivo é o de refletir sobre a metafísica do ser de matriz tomista como desafio epistêmico ao (não) pensar na modernidade e seus reflexos nas multifacetárias vicissitudes desnorteantes do conhecimento na sociedade contemporânea. Segundo os autores, a metafísica, como sabedoria, ensina a julgar e a bem ordenar as coisas. Como ciência do ser, ela cuida do que é separado da matéria. Como intelecção do ser enquanto ser, ela traz a universalidade e necessidade como atributos de maior relevância das coisas particulares e contingentes. Enfim, como crítica do conhecimento, ela se confronta com o pensamento moderno, já que o seu idealismo pretende ocupar o lugar do realismo.
O autor do quarto artigo é Rondnelly Diniz Leite e o seu texto se intitula: Ser e ente na metafísica tradicional: Uma leitura heideggeriana. Aqui o autor se propõe discutir a interpretação de Heidegger relativamente a como a metafísica tradicional concebeu as noções de “ser” e de “ente”. Ele evoca a tese de Heidegger, segundo a qual o pensamento ocidental entendido como metafísica confundiu ser e ente. Em seu início com Platão e Aristóteles, no momento em que o problema concernente ao sentido de ser ganhou fôlego no pensamento desses filósofos, esse tema já caiu no esquecimento e o que ambos conquistaram em suas reflexões se quedou trivializado durante toda a história do pensamento ocidental, com muitas deturpações e incompreensões, até a Lógica de Hegel. O autor visa também analisar as consequências dessa posição fundamental, visto que ao não pensar a diferença ontológica, a metafísica tornou-se uma onto-teo-logia.
O quinto artigo, da autoria de Antônio Djalma Braga Júnior, tem como título: Kant e a religião nos limites da razão. Conforme afirma o próprio autor, a relação entre fé e razão tem sido um tema central nos debates filosóficos e teológicos ao longo dos séculos. A busca por conciliar essas duas dimensões da experiência humana tem desafiado pensadores de diversas tradições e escolas de pensamento. Nesse contexto, a contribuição de Immanuel Kant se destaca como uma das mais influentes e provocativas. Mas a importância de Kant reside também, sustenta o autor, em sua tentativa de conciliar a fé e a razão, superando as diversas dicotomias e promovendo uma abordagem complexa e cuidadosa. O objetivo deste artigo é, pois, oferecer uma análise das ideias de Kant sobre a relação entre fé e razão, o que não deixa de ter implicações não somente sobre a sua ética, mas também sobre a sua própria concepção metafísica fundamental.
O sexto artigo se intitula: Humanismo, um tema ainda necessário: Em torno do humanismo e da fraternidade universal na doutrina social da igreja. A pergunta que o autor, Edivaldo José Bortoleto, lança é a seguinte: Quais são as condições teóricas e práticas que podem ser encontradas na formulação do Papa Francisco para a consecução e realização do projeto de uma fraternidade universal? Para o autor, estas questões acenam para uma proposição de uma arquitetônica de saberes, novidade ímpar na história das encíclicas desde Leão XIII no século XIX. Portanto, a hipótese que atravessa as suas reflexões é a de que Francisco formula um humanismo libertador, de sorte que há um giro no interior da própria Doutrina Social da Igreja fazendo com que a sua leitura eurocêntrica até o pontificado de Bento XVI se dê, doravante, em perspectiva desde as periferias do mundo globalizado, ou seja, desde a América Latina Caribenha, a África, a Ásia e a Oceania, subsumindo a opção preferencial e solidária pelos mais pobres.
O sétimo e último artigo, Performatividade e direito: Uma análise derridiana do fundamento místico da autoridade em força de lei, é da autoria de José Tadeu Batista Souza e Manoel Carlos Uchôa de Oliveira. Os autores têm como objetivo analisar a noção de performatividade na leitura feita por Jacques Derrida em Força de Lei: o “fundamento místico da autoridade”. A pergunta de partida é: como o caráter performativo do discurso jurídico instaura o regime de violência no nível da linguagem? A categoria de “fundamento místico da autoridade” revela um problema quanto à dinâmica do discurso jurídico enquanto violência. Toda essa violência é guardada por um silêncio que sustenta a autoridade do direito. Por isso, é preciso também analisar o argumento de Derrida em relação às teses sobre performatividade de John Austin.
O presente dossiê se conclui com duas recensões. A primeira, de autoria de Altieris Bortoli, discorre sobre a obra: ALMEIDA, Rogério Miranda de; LETENSKI, Irineu (Orgs). Filosofia, teologia e psicanálise. Campinas: Splendet, 2022.
Quanto à segunda recensão, de autoria de Paulo Henrique Carboni, se trata de uma análise da obra: FABRI, Marcelo; GRZIBOWSKI, Silvestre. Introdução à Fenomenologia do Invisível: O amor, o desejo, a vida. Curitiba, CRV, 2022.
Asseguramos, pois, um caloroso agradecimento aos autores que contribuíram para este número de Basilíade e estendemos os nossos votos de uma profícua leitura a todos aqueles que aspiram ao conhecimento e à difusão da cultura.
Os Editores:
Irineu Letenski,
Rogério Miranda de Almeida