Há uma relação rigorosa entre a Palavra de Deus e a vida do crente, porque a Palavra, que é a revelação da glória de Deus, é também, indissoluvelmente, a revelação dos mandamentos de Deus, pelo que o crente é chamado a harmonizar a sua própria existência com a Palavra de Deus[1]. As Novelas do Imperador Justiniano, os conselhos de Barsanúfio, as confidências místicas de Simeão, o Novo Teólogo, e outros textos ainda manifestam uma submissão igual à Bíblia como regra de vida. Mas é sobretudo Basílio quem afirma o princípio imutável segundo o qual cada palavra e cada ação devem ser garantidas pelo testemunho da Escritura[2]: nela deve buscar-se o lógion e a politeia para a salvação da alma[3].
Entre os contemplativos encontramos o simbolismo da alimentação espiritual, do comer das Escrituras: simbolismo de origem bíblica, cristalizado, na tradição, por Orígenes, segundo o qual a Escritura e a Eucaristia estão intimamente associadas[4]. Como a Bíblia é uma das “encarnações” do Logos de Deus, a meditação sobre os Livros Sagrados nos ajuda a descobrir pouco a pouco o segredo divino que habita em nossos corações[5].
Os Padres do Deserto, embora citassem relativamente pouco da Bíblia, no entanto, viveram por ela e ficaram impregnados dela[6]. Um estudo detalhado dos textos typika e hagiográficos mostraria na prática como os monges estavam familiarizados com as Escrituras. Serafim de Sarov, por exemplo, lia todo o Novo Testamento toda semana[7].
A recitação das Escrituras de memória é tomada como exemplo e recomendada pelos anacoretas[8]. Profundamente interpenetrados pelos textos sagrados, alguns monges os repetem continuamente para meditar sobre[9] eles e usá-los na prática da direção espiritual[10].
Esses textos bíblicos, depositados na memória, muitas vezes adquirem um novo sabor espiritual, justamente porque nos preocupamos em descobrir seu significado espiritual. “Lendo a Bíblia”, diz o P. Evdokimov, “os Padres não leram textos, mas o Cristo vivo, e Cristo lhes falou; consumiram a Palavra como se consome pão e vinho eucarísticos, e a Palavra ofereceu-se a eles com a profundidade de Cristo”.[11] Portanto, o caráter inspirado e a origem divina dos Livros Sagrados são noções equivalentes para os Padres, e, em seu pensamento, é precisamente graças à recitação dos textos da Bíblia (especialmente os salmos) que o poder do Espírito está em ação no mundo[12].
Cheia de mistérios, a Bíblia ultrapassa a compreensão humana. Por isso, a pureza de vida do leitor torna-se condição indispensável para a compreensão. Basta lembrar o exemplo de Dositeu, “que foi capaz de compreender certas passagens da Escritura em virtude de sua própria pureza de vida”.[13] Segundo uma bela expressão do P. Evdokimov, a “encarnação” da Escritura “pressupõe a reação do meio que a recebe, uma interpenetração”, uma “perichoresis” como acontece entre as duas naturezas em Cristo.[14]
Fonte: SPIDLÍK, Thomas. La spiritualità dell’Oriente cristiano. Manuale sistematico. Roma: San Paolo, 1995, p. 11-12.
Traduzido por Ir. Marco Antônio Pensak, OSBM.
[1] Cfr. Pastore, visione 1,3,3-4 e passim.
[2] Cfr. J. Gribomont, Les Règles Morales de saint Basile et le Nouveau Testament, in Studia Patristica 2 (coll. Texte und Untersuchungen 64, d’ora in poi TU) 116-426; Id., Obéissance et Evangile selon saint Basile le Grand, VS Suppl. 6 (1952) 192-215; T. Spidlik, La sophiologie de S. Basile, pp. 167ss.
[3] Cfr. I. Hausherr, Noms du Christ et voies d’oraison, OCA 157 (1960) 162ss.
[4] Origene, Omelie sull’Esateuço, su Es 13,3, GCS 6 (in greco), p. 274; dr. H. de Lubac, Histoire et Esprit. L’intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Parigi 1950, pp. 355ss; trad. it. Storia e Spirito, Roma 1971.
[5] H. de Lubac, Histoire et Esprit, op. cit., p. 349.
[6] Cfr. L. Leloir, La Bible et les Pères du désert d’après /es deux collections arméniennes des Apophthègmes, in La Bible et /es Pères, Parigi 1971, pp. 112-134.
[7] Cfr. E. Posseljanin, Russkie podvizniki XIX-ogo veka (Gli asceti russi del XIX secolo), San Pietroburgo 1910, p. 272.
[8] Cfr. Historia monachorum 2, PL 21, 406b; Palladio, Historia Lausiaca 10 e 17, PG 34, 1033, 1041; Atanasio, Vita S. Antonii 3, PG 26, 845a.
[9] Cfr. H. Bacht, «Meditari» in den ältesten Mönchsquellen, in Geist und Leben 28 (1955) 360-373; I. Hausherr, Noms du Christ, op. cit., p. 171; R. Draguet, Les Pères du désert, Parigi 1949, p. 155; Théophane le Reclus, p. 267.
[10] Cfr. T. Spidlík, L’autorità del libro per il monachesimo russo, in Monachesimo orientale, OCA 153 (1958) 169ss.
[11] P. Evdokimov, La femme et le salut du monde, Tournai-Parigi 1958, p. 12; trad. it. La donna e la salvezza del mondo, Milano 1979.
[12] Cfr. H. de Lubac, Histoire et Esprit, op. cit., pp. 299ss; l’abate Marcello nel Pré spirituel 152,.SC 12 (1946) 204ss.
[13] Vie de saint Dosithée 12, SC 92 (1963) 143.
[14] P. Evdokimov, La femme et le salut du monde, op. cit., p. 13.