Santo Tomás de Aquino e a predestinação

Os seres humanos estão sob a providência de Deus, como qualquer outra criatura, mas Deus nos provê de uma maneira especial, especialmente na medida em que temos intelecto, vontade e, portanto, nossa liberdade.

Nomeadamente, Deus nos fornece a graça que opera dentro de nós, para que nos afastemos de tudo o que nos afasta de Deus e confiamos livremente a nós mesmos e toda a nossa vida a Deus em fé, esperança e caridade. O plano para isso na mente de Deus é chamado de predestinação. Essa palavra, predestinação, assusta algumas pessoas, e elas podem pensar que é uma doutrina perigosa, que implica algum tipo de determinismo que destrói a liberdade humana. De fato, o oposto é o caso quando se trata da teoria de Tomás de Aquino dessa importante ideia.

A predestinação é uma verdade das Escrituras e aparece em vários lugares importantes, especialmente no Novo Testamento. Um dos melhores exemplos está na Carta aos Efésios no capítulo um, São Paulo escreve: “Ele nos escolheu nele antes da criação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis, diante de seus olhos. No seu amor nos predestinou para sermos adotados como filhos seus por Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua livre vontade, para fazer resplandecer a sua maravilhosa graça, que nos foi concedida por ele no Bem-amado”.

Este texto expressa algo muito misterioso, mas também muito bonito, sobre a fé cristã, e Santo Tomás o estudou – e outros semelhantes – profundamente e com grande discernimento. A questão não é que nossa livre escolha seja uma ilusão ou que vivamos em um mundo determinístico, mas que Deus tem um plano para nossa salvação. Um plano pelo qual ele docemente e fortemente nos permite segui-lo em liberdade.

Para entender isso, nos ajudará a começar com dois princípios fundamentais que informam o tratamento da predestinação por Tomás de Aquino: o primado de Cristo e o primado da graça na ordem da salvação. A primazia de Cristo significa que somos salvos somente através de Cristo, através do sangue de sua cruz. Nós nos encontramos presos pelo nosso próprio pecado e fraqueza e, com frequência, sabemos o que é bom e, no entanto, achamos difícil fazê-lo. De fato, isso é uma herança do pecado original. Após a queda de nossos primeiros pais, o gênero humana perdeu sua amizade original com Deus e se afastou dele. E, como resultado, nascemos com uma natureza ferida pelo pecado, propensa a desejos de desordem, e temos dificuldade em fazer o que é certo. Simplificando, não podemos nos salvar. Precisamos de um salvador deste poder do pecado e da morte operando em nós, e Jesus Cristo que foi crucificado, morreu e ressuscitou, pois o vencedor da morte é o único salvador do mundo. Ele é quem abre para nós o caminho da salvação e nos atrai para o alto para habitar com ele. De Cristo então, e pelo poder de sua paixão salvadora, a graça flui para o mundo. Em ordem de salvação, a primazia de Cristo nos leva a reconhecer a primazia da graça. Somos salvos pela graça de Cristo, não por nosso próprio poder ou nossos próprios esforços.

Agora, para ter certeza, é importante cooperarmos com essa graça, mas a salvação é primordialmente e principalmente a obra de Deus em nós, a obra da graça. Essa graça faz duas coisas; nos cura e nos eleva. Deveríamos contrastar esse ensinamento católico com uma das grandes heresias cristãs – o pelagianismo, em homenagem ao seu autor, um homem chamado Pelágio.

Pelágio negou que a graça nos cura e nos eleva. Em vez disso, ele dizia que, com nosso próprio trabalho duro e boas escolhas, nós podemos nos salvar. Em sua forma moderna, vemos essa visão em operação em muitos lugares. Tudo vai dar certo para mim. Eu vou para o céu se fizer o que puder para ser uma boa pessoa. Santo Agostinho, no século IV, já reconheceu que essa maneira de pensar pelagiana é profundamente contrária ao Evangelho e é de fato uma perigosa heresia, porque não reconhece a verdade de que precisamos radicalmente de ajuda para fazer o bem, e que sem a ajuda especial da graça divina, não podemos ser salvos. Então, em resposta ao pelagianismo, a Igreja deixou claro que só podemos ser salvos pela graça de Deus por duas razões imponentes. A primeira razão é que, mesmo que o homem nunca tenha pecado, simplesmente não é possível que nossa natureza seja amiga de Deus, tenha vida eterna com Deus ou participe da natureza divina. Essas coisas estão simplesmente acima de nós. Elas são sobrenaturais, e não podemos alcançá-las por nossos poderes naturais. Somente Deus pode nos dar. A segunda razão é que, depois que pecamos, estamos em uma posição ainda pior do que a nossa natureza considerada por si só. Depois do pecado, experimentamos as feridas do pecado e o enfraquecimento de nossa natureza, de modo que até o bem natural que devemos ser capazes de fazer por nós mesmos se torna difícil para nós. Além disso, estamos alienados de Deus por nossas próprias escolhas, recusando-nos a viver como seus amigos.

Como isso é verdade, Santo Tomás segue Santo Agostinho sustentando que há assimetria na ordem da salvação. Se somos salvos, nossa salvação vem inteiramente de Deus enquanto cooperamos livremente. Mas se pecamos e recusamos a salvação, isso não é causado por Deus, mas é inteiramente devido à recusa da criatura. Falaremos mais sobre isso no artigo que trata do problema do mal, mas é importante sinalizá-lo aqui. Deus não é de modo algum a causa do pecado, mesmo que ele permita. Ele não causa nossa recusa ou nos leva a recusar sua graça, mas nos deixa fazê-lo. Em outras palavras, Deus não nos predestinou ao mal.

Quando Tomás de Aquino fala de predestinação, ele está se referindo ao plano eterno de Deus de conceder graça às criaturas irracionais, a fim de enviá-las ao seu fim último, que é a vida eterna com Deus. Deus é o autor de nosso próprio ser e de nossa natureza humana e, assim, como nosso criador, Deus pode trabalhar dentro de nós, interiormente, de uma maneira diferente de qualquer outra criatura. Ele pode iluminar nossas mentes para ver o que é bom e depois agir de acordo com nossas vontades, a fim de movê-las livremente a desejar esse bem. Agora, tratamos brevemente o que é a predestinação. Algumas questões importantes ainda permanecem. Por exemplo, como uma pessoa humana se afasta de Deus e recusa a graça de Deus? Trataremos disso em um artigo futuro.

Se você gostou deste post, não deixe de compartilhar com seus amigos e de se conectar conosco em nossas redes sociais.

Fonte: The Thomistic Institute.

9 thoughts on “Santo Tomás de Aquino e a predestinação

  1. Denilson says:

    Se alguém puder ajudar nesta questão, se Deus é onisciente e sabe o destino de cada alma que cria, porque criaria uma alma que sabe por sua presciência que esta irá para o inferno?

    • CINTHIA FLORES says:

      talvez amigo o céu e o inferno sejam apenas uma passagem para o que há de maior em nossa existência, a imortalidade. abraços,
      obs: FASBAM, se eu estiver errada, me corrijam por favor.

    • Reinaldo says:

      É preciso entender que nós (criatura) estamos no tempo e Deus é a própria Eternidade. O Aquinate exemplifica a nossa visão como um homem numa fila indiana que vê o anterior e o posterior; a visão divina seria a de alguém que vê a fila num só golpe de vista. Deus sabe porque vê tudo num golpe só, mas nós por partes. E nós escolhemos, apesar das inúmeras chances, nós perder.

    • David Mesquita says:

      A criação ocorreu apenas nos primeiros 7 dias. Depois dali e disse parar homem procriar e se multiplicar sobre a terra. Todos têm o direito de viver, o pecado não entrou no mundo por causa de Deus, mas por causa do homem. Deus não predestina ninguém para o mal. Essa é uma escolha voluntária do homem. Deu plantou uma árvore no meio do jardim para que Adão exerce seu direito de escolha, mas Deus já sabia de antemão qual seria sua escolha. Ele poderia não ter criado Adão e Eva, par ter dor de cabeça ďepois. Mas ele criou como um ato livre de sua graça e amor, para que o homem conhece Seu Eterno poder de Criador, assim como Sua misericórdia e Sua maior demonstração de amor, no sacrifício de Seu próprio Filho. Um amor sem igual, agape, incondicional, pois morreu para salvar a todos sem exceção.
      Então, todo esse enredo foi essencial para que o homem conhecesse e amasse Deus, pelo que Ele é fez e faz. Deus dá a todos o direto a vida e a liberdade de escolha e pela graça já providenciou a redenção, logo a escolha é do homem se quer receber esse dom da salvação ou não.

    • AKC says:

      Denilson, tenho a mesma dúvida e nunca vi uma resposta adequada. Os colegas que postaram não responderam a sua questão. A única resposta misericordiosa que consigo conceber é herética: haveria uma segunda chance após a condenação ao inferno. Mas essa resposta está fora de questão. Talvez Deus crie seres para se condenarem por suas más escolhas apenas para demonstrar Sua justiça e servir de exemplo para aqueles que buscam a salvação. Mas mesmo assim me parece haver algo de errado nesta explicação – Deus criar seres cuja razão de existir seja apenas para que se condenem e sirvam de exemplo a outros. Sinceramente, acho que esta questão não possui resposta cognoscível para nós, humanos.

      • Pedro Planas says:

        Há sim uma resposta, apesar de complexa. Considerando a onisciência, onipotência e onipresença de Deus, por que ele permitiria que o homem pecasse e fosse condenado ao inferno (rompimento eterno da comunhão com o criador)? O cerne dessa questão, ao meu ver, e acredito que essa também seja a opinião doutrinária da Igreja, consiste no mistério de sermos imagem e semelhança de Deus. Deus, em ato de puro amor, nos fez à sua imagem e semelhança. Isso é de difícil compreensão, pois sermos imagem e semelhança de Deus nos faz livres, porém não nos faz Deuses. Ou seja, somos importantes e feitos para a eternidade, mas ao mesmo tempo não somos nada em comparação ao criador e podemos ser condenados. Por essa razão, Deus pôde nos dotar de uma liberdade onde Ele próprio “não pôde” interferir, sob pena de romper com a sua própria vontade de nos criar à sua imagem e semelhança. A partir disso também encontramos sentido na missão de Cristo que, sendo Deus, novamente em ato de puro amor, se fez homem para vencer a morte, expressa no pecado original, e que entrou na humanidade no exercício da liberdade humana de Adão e Eva. Como Deus poderia salvar o homem sem romper com a sua imagem e semelhança? Se fazendo homem e pagando todos os nossos pecados e, com isso, trazendo a possibilidade de salvação de todo por meio da remissão dos pecados. Por essa razão a linha do tomismo e o molinismo são aceitas pela doutrina, até onde sei, pois não contrariam a possibilidade de salvação oferecida a todos.

    • Andre Chilano says:

      O problema está na própria pergunta. Deus não sabe primeiro do que vamos fazer para só depois decidir criar ou não. tudo está presente em Deus de forma instantanea na eternidade.
      Abraços.

  2. Marcos Alexandre Guimaraes Silveira says:

    Bom dia Denilson. Vc nao pode esperar essa resposta de ninguem. A unica resposta plausivel , mas não profunda , é que Deus ja sabe tudo que vai ocorrer no futuro. Diz nas Escrituras que Deus ja havia preparado Jesus para morrer. Assim que , Deus decretou a queda de Eva e Adão. Vc certamente se assustará , eu dizer, ” decretar”. Isso mesmo! Ele nao permitiu a queda e sim decretou. Se Ele permitiu, para que Jesus na eternidade já estava preparado? Ele teria que predestinar Cristo depois da queda. Pelo contrario, preparou, predestinou Cristo na eternidade ” passada”. Pois sabia que o homem cairia no futuro.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo