Os vestígios de Deus em Santo Agostinho

Para o Bispo de Hipona, Deus é o ser por excelência, sendo aquele que ao enviar Moisés diz: Ego sum qui sum (“Eu sou aquele que sou.” Ex 3,14). Pelo simples fato de existirmos, já designa a nossa essência, dessa forma, Deus é a essência suprema, sendo imutável. Ao criar as coisas, Deus não deu a mesma essência do criador em sua criatura, pois isso seria contraditório, mas os concedeu serem mais ou menos: “Eis por que a essência suprema, que é Deus, não tem contrário”[1]. Na desigualdade da participação entre o Ser e as essências, está ideia se representa por uma das ideias de Deus.

Tudo o que existe, é da forma que é, devido sua participação nas ideias de Deus, entretanto, para se chegar ao centro dessa relação é necessário ultrapassar estendendo a relação de participação a participação. De outro modo, devido toda essência, imitar as ideias de Deus, isso faz com que elas sejam semelhantes a Deus. Com isso existe uma castidade em si, por meio de uma participação, onde todas as almas são castas; uma sabedoria, onde sua participação torna sábias as almas; e uma beleza, que por meio da participação, deixa todas as coisas belas. Desse modo, se houvesse uma semelhança em tudo que existe, seria uma Semelhança, no qual todas as coisas se assemelhariam. Essa semelhança primeira, é o Verbo (Cristo): “Aquele que me viu, viu também o Pai.” (Jo 14,9). Pois a imitação perfeita do Pai é o Filho, e este representa a semelhança idêntica daquele que o gerou: “Génitum, non factum, consubstantiálem Patri”[2] (Gerado, não criado, consubstancial ao Pai). Dessa forma não existe nada mais semelhante do que a Semelhança, “eis porque a semelhança do Pai lhe é tão semelhante que reproduz a natureza paterna de maneira plena e acabada.” [3]

O universo em que vivemos, não se compõe apenas de imagens que são como são em função das Ideias que representam, mas também que ele é, universalmente dizendo, compostos de imagens, pois existe uma imagem e uma Participação em si, desse modo, é perfeita, pois tudo que “é” pode participar de Deus e o imitá-lo. Não é possível dizer que a imagem é semelhante aquilo que é imagem, pois nem tudo que é semelhante, a outra coisa, é imagem. Para que uma semelhança seja imagem, é preciso que seja uma semelhança entre o ser que gera e aquele que é gerado.

Nesse mesmo caminho, o reflexo que um homem gera ao entrar na frente de um espelho, é sua imagem verdadeira, pois foi ele quem o produziu, do mesmo modo, o Verbo pode ser dito que é a Imagem do Pai, de forma que o Pai o gerou como uma perfeita semelhança de si mesmo. Essa relação de Deus consigo mesmo, onde ele exprime de forma plena e total na Imagem em si, “que é o Verbo, é a fonte e o modelo de todas as relações que permitirão às criaturas a ser e subsistirem”.[4]

Para Agostinho, a semelhança desempenha um papel intermediário em sua doutrina, pois é a ela quem permite que as coisas criadas existirem, pois, ser é um, e somente Deus é um. Dessa forma, somente Deus “é”. A semelhança, concede as coisas o “ser um” e uma certa unidade, não perfeita e absoluta, visto que para as coisas existirem é necessário que elas possuam uma unidade. Dessa forma, a unidade está nas coisas como a semelhança a unidade perfeita de Deus. Com isso o Verbo de Deus, sendo a Semelhança por excelência, concede a tudo a semelhança da unidade de Deus.

Com uma visão interior, a alma só permanece sendo alma, devido existir uma unidade interior, uma constância, um movimento interno regular com relação as suas ações e virtudes. Também existe uma similaridade entre as almas, sendo uma unidade de “espécies” que as tornam, todas almas. O mesmo acontece com a amizade, em que se tem uma similitude nos costumes, e onde a na obra “A Cidade Deus”, Agostinho vai dizer que que a unidade está na comunhão de seus membros em busca de um mesmo bem.

É no Verbo que se encontra a raiz do uno e do ser, mas também existe nele a raiz do belo, visto que, a imagem que assemelha-se de forma perfeita daquilo que é imagem (o Verbo assemelhando-se de forma perfeita e plena ao Pai), acaba por criar uma harmonia e simetria perfeita, onde não existe diferença, desigualdade, desacordo, entre o modelo e a imagem, pois corresponde de forma idêntica a original.  Essa beleza original que se funda na semelhança é encontrada em todas as belezas participadas, pois quanto maior for a semelhança entre as partes, mas belo “é”. Com isso é esta unidade produzida pela semelhança que gera a beleza.

Com isso a harmonia e a beleza são aspectos da unidade e da semelhança, pois algo é belo na medida que suas estruturas constitutivas se disponibilizam segundo a semelhança que existe entre suas partes. Segundo Gilson (2006, p. 404):

O universo inteiro é belo somente porque é feito de seres que são o que são, cada um deles, em razão da similitude de suas partes e que são todos semelhantes entre si por sua relação comum com a unidade criadora.[5]

Isso sobre o que é verdadeiro sobre o ser e a beleza na natureza e na arte não é algo menos verdadeiro sobre a verdade. Todas as coisas possuem uma verdade em si, de modo que elas “são” a medida que expressão essa verdade. Tudo o que “é” verdadeiro é verdadeiro somente porque “é” e, inversamente, porque o que é, é na medida em que é verdadeiro. Dessa forma, o Verbo sendo Semelhança e Beleza por excelência, é, desse modo a Verdade, pois é a imagem perfeita do Pai, com isso sendo Semelhança suprema, confere a tudo o ser, assim acaba por conferir de Si a verdade, para as outras coisas.

Tudo o que se pode dizer é, portanto, que elas são semelhantes na medida em que são e que, também na mesma medida, são verdadeiras. Nesse sentido, o Verbo de Deus pode ser dito a forma de tudo aquilo que é, dado que a título de Semelhança suprema do Pai, ele confere a todas as coisas o ser, a unidade, a beleza e a verdade delas.[6]

Deste modo, o universo possui seu sentido que vem da participação do ser de Deus. Com isso tudo que existe tem sentido nele, e podemos o conhecê-lo por meio de sua criação. O homem sempre está à procura da verdade e para Agostinho procurar essa verdade, é procurar a Deus, e para Ele ao aprofundar o conhecimento a respeito de Deus, não o compreendendo em um sentido Aristotélico, ou seja, de forma impessoal e como um motor imóvel. Mas é um Deus pessoal que completa o vazio interior e a inquietude do espírito humano, um Deus que se relaciona.

Se o universo é a criação de Deus e que encontra sua razão n’Ele, é possível, em certa medida, conhecê-lo. E com isso devemos buscar encontrar traços e vestígios que Ele deixou para nos reconduzirmos a Ele e fazer-nos participar de sua beatitude.

Para tratar sobre o tema da Trindade, Agostinho se utiliza de duas fontes bíblicas como exortação, a primeira está no livro de Gênesis e diz: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança.” (Gn, 1,26); e a segunda é retirada dos escritos paulinos: “Agora, vemos a Deus em espelho e em enigma, mas depois o veremos face a face.” (1Cor. 13,12). Esta última, o Bispo de Hipona realiza uma analogia com outra passagem do apóstolo que diz: “E nós todos que, com a face descoberta, contemplamos como em espelho a glória do Senhor, somos transformados nessa mesma imagem, de glória em glória, pela ação do Espírito do Senhor.” (2Cor, 3,18)

No livro do Gênesis Deus vai dizer: “façamos o homem à nossa imagem”? e mais para frente: “E fez o homem à imagem de Deus.” (Gn 1,26-27). Agostinho quer mostrar, que Deus ao dizer isso, não quer referir-se que somos somente imagens, do Pai, ou só do Filho, ou só do Espírito Santo, mas somos, imagens da Trindade, e essa Trindade é um só Deus, por isso que logo o livro do Gênesis vai dizer: “E fez o homem à imagem de Deus.” (Gn 1,26-27).

Santo Agostinho retira sua metafísica da participação dos seres na natureza divina, isso quer dizer que todas as coisas criadas só encontram a razão de ser, em Deus, que é seu criador. Também significa dizer que as coisas criadas, podem nos revelar, em maior ou menor grau, a Deus, ou seja, por meio das criaturas podemos conhecer a essência do criador. Para conhecer o autor, devemos nos voltar para sua obra, pois é por meio dela, que encontraremos vestígios para o conhecimento de Deus. Deus é Trindade – não que ele seja Deus além disso três pessoas, mas porque sua natureza divina é trinitária – com isso ao busca-lo no mundo criado, ele deverá apresentar algumas trindades: “Assim sendo, se há vestígios de Deus na natureza, esses devem dar testemunho de sua trindade, tanto quanto de sua unidade.”[7]

Unicamente por meio da na mente humana – parte mais nobre da alma – é que Deus imprimiu sua imagem: “É necessário, porém, procurar na alma do homem, ou seja, em sua mente racional e inteligente, essa imagem do Criador, inserida imortalmente nesta nossa natureza imortal.”[8] Com isso para adentrar ao mistério da Trindade, o homem, necessita voltar a sua mente, para nela encontrar trindades que revelem o mistério trinitário. A mente humana está sempre em um estado de potencialidade, em busca de uma realização cada vez maior, enquanto a Trindade já está completamente em ação e sempre atualizada.

Com efeito, em toda criação, Deus deixou sua marca, seu vestígio, e todas suas criaturas são boas. “Portanto, tudo o que existe é bom e possui alguma semelhança com o sumo Bem, embora de modo longínquo.”[9]

Agostinho possui preferencias por analogias de ordem do conhecimento, e em particular, da ordem das sensações. Este diz respeito ao homem exterior, por isso, não se pode buscar uma imagem de Deus propriamente dita, mas apenas um vestígio, ou seja, uma analogia longínqua e indeterminada, mas mais fácil de apreender em razão do seu caráter sensível.

Para ele o homem exterior, é aquele que se norteia pelos sentidos, enquanto o homem interior é aquele que norteia seus pensamentos na inteligência e por meio da contemplação das verdades eternas. Dessa forma, só o homem interior, consegue guardar a imagem de Deus, devido ele ser capaz de voltar-se para si na busca de Deus, mas para isso é necessário que antes, ele passe pelo autoconhecimento de sua própria alma.

Para falar do homem exterior[10], Agostinho utiliza o exemplo dos sentidos, onde se detém ao da visão, no qual é o mais nobre e, pois, é o mais próximo do conhecimento intelectual.  Ao observar um objeto, é possível distingui-lo em três termos: a coisa que é vista; a visão da coisa (forma impressa pela coisa no órgão visual); e a atenção do espírito que mantém a vista fixa no objeto. São três coisas distintas: o objeto, corpo material; a forma que ele imprime no sentido; e a atenção do espírito, que no qual pertence ao pensamento. Embora distintos estes três termos possuem uma estrita união, sendo este o primeiro vestígio da Trindade.

Dessa forma, se compara o objeto que gera sua forma com o Pai, a forma impressa por ele nos sentidos é comparável ao Filho; a vontade que uno o objeto ao sentido, enfim, é comparável ao Espírito Santo.”[11] O Pai põe sua imagem no Filho. Contudo essa analogia é falha, pois o Pai basta por si só para gerar o Filho. Já o objeto é ao contrário, necessita do órgão do sentido para gerar uma forma. Antes de vermos algo, já possuímos uma vontade, capaz de provocar a sensação aplicando o sentido à coisa. Pois para possuir analogias com maior profundidade, é necessário que o homem exterior, passe para o interior, para além dos vestígios, é necessário encontrar imagens do criador em nós.

[1] Nota de rodapé do livro: GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Editorial & Paulus, 2006, p. 397.

[2] Credo Niceno-Constantinopolitano. 325. Disponível em: <http://www.liturgiacatolica.com/credo-niceno-constantinopolitano-latim.html>. Acesso em: 23 set. 2018.

[3] GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Editorial & Paulus, 2006, p. 399.

[4] GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Editorial & Paulus, 2006, p. 400.

[5] _______Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Editorial & Paulus, 2006, p. 404.

[6] GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Editorial & Paulus, 2006, p. 405.

[7] AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 400.

[8] __________, Santo. A Trindade. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 266.

[9] __________, Santo. A Trindade. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2005, p. 210.

[10] “Também ela nisto está de acordo conosco pois, mesmo quando as duas partes estão unidas e o homem vive ainda, dá ela a cada uma das partes o nome de homem: chama à alma «homem interior» e ao corpo «homem exterior», com o se fossem dois, em bora o homem seja um a e outra parte ao mesmo tempo.”

AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira, vols. I e II. 2. ed. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. 2 v. p. 409.

[11] GILSON, Étienne. Introdução ao Estudo de Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Editorial & Paulus, 2006, p. 410. Tradução: Cristiane Negreiros Abbud Ayoub.

Autor: Ermes Rodrigues de Almeida Neto, estudante do terceiro ano do curso de Filosofia da FASBAM e seminarista da Ordem de Santo Agostinho.

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