O refúgio no Coração de Cristo na hora da aflição

Pe. Soter Schiller, OSBM

A nossa reflexão de hoje vamos fazer no contexto da festa do Sagrado Coração de Jesus. E vamos celebrar esta festa num outro contexto: da aflição que estamos vivendo em decorrência da pandemia. É uma aflição não só nossa, mas de toda a humanidade, tomada de temor, horrorizada pelas vidas ceifadas, pelo perigo mortal que ronda a vida de cada um. É a humanidade de joelhos perante um microscópico ser vivo – o vírus, o mais simples dos seres vivos.

Mas vamos partir de uma reflexão sobre uma festa que recai neste mês de junho, a festa do Sagrado Coração de Jesus. Não é uma devoção ao coração de Jesus, como órgão do corpo de Jesus, mas é a festa do amor divino: é a celebração do amor divino – que Deus tanto amou o mundo que enviou ao mundo seu único Filho, Jesus Cristo, que deu a sua vida por amor aos homens.

A festa do Sagrado Coração de Jesus é a festa que conclui o ciclo litúrgico das chamadas “festas móveis”, que vem desde a Quaresma, Semana da Paixão, Páscoa da Ressurreição, Ascensão de Cristo, Pentecostes, Eucaristia – por fim, a festa do Sagrado Coração de Jesus. Como que para dizer que tudo isso representa a história do amor divino para com os homens. A história do Filho de Deus que veio ao mundo e cumpriu a obra da nossa salvação – que toda essa história – é uma história de amor.

Esta festa do Sagrado Coração de Jesus nas Igrejas Orientais tem o nome de festa do Cristo Filantropo ou, podemos dizer, festa do Cristo Amigo. Temos aqui um sentido muito rico, muito profundo de um título aplicado a Jesus Cristo. Ele é “filantropo” – “чоловіколюбець”. A palavra “чоловіколюбець” é a tradução do grego “filantrópos”. Essa palavra está muito presente em toda a nossa Liturgia. Só na Divina Liturgia de São João Crisóstomo ela ocorre 14 vezes! Cristo é “чоловіколюбець” – filantrópos”.

A palavra “filantrópos” (чоловіколюбець) é uma criação da Teologia Oriental, ela não aparece na Bíblia. Mas os Padres gregos, bizantinos, usam muito essa palavra, particularmente São Basílio usa muito. Parece que o primeiro que usou a palavra “filantrópos” foi Cirilo de Alexandria. Essa palavra expressa uma realidade muito profunda sobre Cristo: Cristo é o amigo, amigo dos homens ou amigo humano.

De certo, já ouviram falar da distinção que existe entre “filia” e “agápe”. “Filia” é o amor humano, amizade. “Agápe” é o amor espiritual, sobrenatural, por motivos sobrenaturais, caridade. Se dizia que o amor cristão é “agápe”. O amor humano, a “filia” grega, era desvalorizado…

Pois bem, a Patrística grega, bizantina, recuperou o sentido de “filia”, da amizade, e até o aplica a Cristo. Cristo é o nosso amigo. Amigo – é o nosso próximo mais próximo, é aquele que está do nosso lado sempre, em todos os momentos. Amigo verdadeiro é aquele que não nos abandona quando a coisa está ruim. O verdadeiro amigo é aquele que nos consola, é aquele que tem a coragem de nos falar a verdade, de nos corrigir. É o nosso confidente, diante do amigo não escolhemos palavras, diante de quem temos toda a liberdade. O amigo verdadeiro é, às vezes, até mais próximo que o nosso irmão. Falamos, confidenciamos ao amigo, algumas coisas que não falamos para o nosso irmão.

Pois bem, a Teologia Oriental nos apresenta Cristo como Amigo. Ou melhor, é Cristo que se apresenta para nós como “amigo”. Ele não só é Deus, a quem devemos amar de todo o coração. Ele não só quer a nossa “agápe” (aquele amor sobrenatural) – Ele quer ter conosco relações de amigo. “Já não vos chamo de servos – chamo-vos de amigos” (Jo 15,15). “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). E Ele deu a sua vida por nós.

Jesus quer ter uma relação de amizade conosco. Ele quer saber tudo de nós, Ele quer saber de nossas alegrias, das nossas conquistas, e também dos nossos problemas, nossas dores, nossos fracassos, Ele quer participar de tudo o que é nosso. Ele é o nosso conforto, o nosso sustento, o nosso amigo mais íntimo.

Possamos nós compreender realmente as palavras que Ele diz: “Vinde a mim vós que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso; Tomais sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para as vossas almas, porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve (Mt 11, 28-30).

É isso: devemos estabelecer uma relação de amor e amizade profunda com Cristo. É isso que vai nos sustentar na vida. Nem a ciência, nem doutorado, nem alta teologia. É no coração de Cristo que encontraremos a força, a energia que vai nos sustentar na vida. Na nossa vida religiosa e sacerdotal vamos encontrar de tudo: alegrias, satisfação, decepção, sofrimentos. Não se iludam. Às vezes vamos perceber que tudo desaba à nossa volta, e nós estamos à beira de um buraco, ou já dentro de um buraco… Tenhamos claro: só amor, a amizade de Cristo nos sustentará.

Uma pequena colocação sobre o momento que estamos vivendo: a aflição que assola a humanidade.

De um lado, nós estamos em relativa segurança, somos até certo ponto privilegiados, em comparação com tanta gente aflita, angustiada, que não pode se isolar como nós, precisa trabalhar, precisa se expor, para ganhar o pão de cada dia.

Saibamos ser solidários, não fruir egoisticamente a nossa segurança… Saibamos também interpretar os acontecimentos, que sentido tem tudo isso para a humanidade.

Existe uma posição, um ponto de vista, filosófica, chamada deísmo: isto é, que admite um Deus criador, que Deus criou o mundo, e daí o mundo rola por conta, Deus não intervém no mundo.

Mas na Sagrada Escritura, sobre tudo no Antigo Testamento, temos outra imagem, outro conceito: Deus presente na história humana, Deus que caminha com os homens, e que está presente e age em todos os momentos da história. Não é que Deus manda a chuva, que Deus promove as guerras, causa as calamidades, manda as pestes – cabe ao homem resolver seus problemas.

Mas tudo tem um sentido na história, tudo tem marcadamente a presença de Deus, a vontade de Deus. E a presença de Deus é sempre misericordiosa, é uma presença de amor… Quando Israel caiu no cativeiro da Babilônia – quando estava no fundo do poço como povo, como nação – Deus assegurava a Israel, por meio do profeta Jeremias – o seu amor a Israel – eu te amo Israel, eu não te abandonei, eu não te abandonarei jamais…

Saibamos também nós reconhecer o sinal dos tempos e interpretá-los à luz da presença de Deus. Tudo o que está acontecendo tem um sentido: talvez para recordar aos homens a sua fragilidade. Os tempos atuais exaltam o poder do homem, o poder da inteligência humana – o homem poderoso. Mas eis que o poder do homem é derrubado por um ser vivo minúsculo.

Quem sabe um sinal de Deus para recordar a nossa fragilidade, os nossos limites no mundo, a nossa dependência do poder superior – que devemos mudar nossa ação no mundo, que há limites na consciência de que o homem é o dono do mundo. Nem o dono de si mesmo ele é.

Nós que estamos perturbados e aflitos, busquemos, no Coração de Cristo, as respostas, os sentidos, o conforto e o consolo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo