Se é que depusemos o fardo do Jejum, todavia, não percamos os seus frutos, pois é possível deixar de jejuar e ao mesmo tempo colher seus frutos[1].
Passou-se o aperto das lutas, porém, o zelo de cumprir nossas obrigações não deve desaparecer. Foi-se o jejum; que continue nosso cuidado.
Não vos assusteis, pois falando nisso, não vos enuncio uma outra Quaresma, mas elogio vossa virtude!
Passou-se o jejum corporal, não, porém, o jejum espiritual!
Este é superior àquele, visto que o jejum corporal existe em razão do espiritual.
Como vos disse, quando estáveis jejuando, que é possível jejuar sem que se jejue, digo-vos também agora inversamente: sem jejuar podeis estar jejuando!
A sentença parece ser um tanto enigmática, porém, resolverei o enigma.
Como é possível jejuar sem que se jejue? Abstendo-nos das refeições e cometendo pecados! Como é possível sem jejuar estar jejuando?
Tomando refeições e abstendo-nos dos pecados! Este segundo jejum é superior ao jejum corporal; e não apenas superior, é também mais leve!
Muitos são contra o jejum corporal, alegando fraqueza; isso é uma real tentação!
Um diz: “Estou com doença de pele”. Outro: “Não aguento sem tomar banho.”
Este: “a hidropsia me impede”.
Aquele: “Não posso viver sem verdura”.
Já ouvi muitos falarem assim. No entanto, ninguém pode alegar essas desculpas para o jejum espiritual!
Tomai vossos banhos! tomai vossas refeições! usai moderadamente de vinho! Se quereis comer carne, não haverá ninguém que o impeça! gozai de tudo!
Deixai, porém, o pecado!!
Estais vendo como o jejum espiritual é leve? Contra este não se pode alegar motivos de fraqueza. Ele beneficia e purifica a alma!
É possível embriagar-se sem beber vinho e ser sensato usando de vinho! Que há uma espécie de embriaguez não causada pelo vinho nos comprova o profeta; ouvi: “Ai dos que se embriagaram sem vinho”[2].
De que maneira podeis ficar embriagados sem beber vinho?
Quando não misturais a intemperança das paixões com o senso da prudência!
Também é possível beber vinho sem embriagar-se! Se isso fosse impossível, Paulo não teria ordenado a Timóteo: “Usa de um pouco de vinho, por causa de teu estômago e das tuas frequentes enfermidades”[3].
A embriaguez é uma espécie de loucura, de alienação mental, privação do juízo, obtusão do espírito!
Essa embriaguez não se origina exclusivamente do vinho, mas também da ira, e da sensualidade infrene.
Assim como a insônia, o esgotamento, o desânimo e a má digestão são causas de febre (nisso paixão e doença se assemelham, embora sejam coisas diferentes), assim também provém a embriaguez do vinho e da concupiscência e se assemelham nisso a paixão e a doença embora sejam coisas diferentes.
Fujamos, portanto, da embriaguez; não digo: fujamos do vinho, mas da embriaguez! Não é o vinho que causa a embriaguez — pois, é uma criatura de Deus e Este não fez absolutamente criaturas más — mas a vontade corrupta.
Que existe um outro modo de embriagar-se, provam as palavras de São Paulo: “Não vos embriagueis com o vinho”[4].
Ele faz nos entender que existe outra espécie de embriaguez. “Não vos embriagueis com o vinho, no qual está o desregramento”.
Coisa admirável! Em breves palavras resumiu toda espécie de embriaguez!
Qual é o sentido das palavras: “Não vos embriagueis com o vinho, no qual está o desregramento?
Chamamos de desregrados aqueles moços que, depois de ter recebido a herança paterna, tudo duma vez delapidam, sem pensar para quem e quando devem dar, gastando à toa vestuário, ouro, prata, e a herança paterna toda com meretrizes e luxuriosos!
A embriaguez procede do mesmo modo!
Ela se apossa do juízo dos embriagados como do de um moço desregrado, subjugando seu entendimento e constrangendo-os a esbanjar inconsideradamente e sem reserva o cabedal de seu intelecto.
Quem está embriagado desconhece a oportunidade de falar e calar, sua boca solta parvoíces sem parar e ignora qualquer freio!
Quem está embriagado perde o critério de suas palavras, não sabe dispor do dom da inteligência, não sabe o que guardar ou gastar, mas desperdiça e malbarata tudo!
A embriaguez é uma loucura voluntária, traição do entendimento, desgraça que provoca zombarias, doença ridicularizada, aliança com o demônio!
Ela é mais horrorosa que a demência!
Perguntais, se o estado do embriagado é pior que o do lunático?
Este inspira compaixão, aquele, porém, desprezo! com um nos condoemos, com outro nos irritamos e nos encolerizamos!
Por quê?
Porque o sofrimento do lunático provém de maldade alheia, o do embriagado de seu próprio desleixo!
O lunático é vítima de forças hostis, o embriagado de seu próprio procedimento!
Todavia, o lunático e o embriagado sofrem os mesmos incômodos: ambos andam cambaleando, ambos caem, ambos seduzem as donzelas, ambos jazem no chão em convulsões. Da boca de um sai espuma, da boca do outro se desprende gosma dum mau cheiro insuportável.
O embriagado causa nojo a seus amigos, provoca escárnios de seus inimigos, torna-se desprezível aos seus empregados, rabugento para sua mulher, grosseiro para com todos e mais aviltante que os próprios brutos!
Pois, os animais bebem enquanto têm sede para satisfazerem seus apetites conforme a necessidade; o beberrão, porém, passa os limites da necessidade por suas extravagâncias e é mais irracional que os próprios irracionais!
O cúmulo é pensar que um vício assim, que acumula tantos males e acarreta tantas calamidades, não merece censura!!
Pois, nos banquetes dos ricos a censura desse vício é ponto de discussão e de polémica e eles se rivalizam. em ver quem se desmanda mais, quem provoca maior hilaridade, quem comete maiores descomposturas, quem mais rebaixa a autoridade, quem mais provoca o Senhor de todos!
Vede! que rivalidade satânica!!
O beberrão, é mais miserável que um cadáver!
Pois este não tem mais sensibilidade e é incapaz tanto do bem como do mal!
O beberrão, porém, tem apenas aptidão para o mal! Seu corpo é um sepulcro ambulante como se sua alma estivesse sepultada no corpo.
Dizei-me, não é verdade que o beberrão é mais miserável que o lunático, mais irracional que os próprios brutos, mais insensível que o cadáver?
Quereis que vos diga uma coisa penosa, mais horrorosa do que acabei de dizer?
O homem que se entrega à bebedeira não pode entrar no Reino dos Céus!!
De quem é essa asserção?
De Paulo: “Não vos enganeis nem os fornicários, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores hão de possuir o Reino dos Céus”[5].
Ouvistes a que classe de gente o bêbado pertence?
À classe dos prostituídos, dos fornicários, dos idólatras, dos adúlteros, dos maldizentes, dos avarentos, dos roubadores!
— Que dizes? Ser um bêbado é a mesma coisa que ser um prostituído?
— Não me faças essa objeção, homem!
Se reconheces os mandamentos divinos, não chames a mim para prestar contas!
Interroga Paulo! ele te responderá!
Se com eles ou sem eles está marcado para o castigo, não sei dizer! Mas que o bêbado tanto como o idólatra são banidos do Reino de Deus, isso afirmo categoricamente!!
Se com isso concordas, para quê ainda perguntar pelo grau da maldade?
Se o beberrão fica fora das portas, se é excluído do Reino dos Céus, se perde a Salvação, se é destinado para o castigo, por quê me perguntas com tanta insistência pelo grau, pela gravidade e pelo peso dos pecados?
Sem dúvida alguma, queridos, a embriaguez é um pecado grande e terrível!
Não o digo para vós, isso não!
Estou certo de que vossas almas estão isentas desta doença, desta paixão, e a prova de vossa saúde espiritual é a vossa presença aqui! vossa concorrência zelosa! vossa atenção! pois, ninguém que se embriaga pelo vinho pode ser desejoso da palavra divina!
“Não vos embriagueis com o vinho, em que está o desregramento, mas enchei-vos do Espírito Santo!”[6].
Eis aí uma ebriez sublime!
Ebriai-vos com o Espírito Santo para não vos embriagardes com o vinho.
Resguardai vosso juízo e entendimento afim de não cair naquela desvergonhada paixão!
Por isso Paulo não disse: “Participai do Espírito Santo”, mas “Enchei-vos do Espírito Santo”,
Enchei-vos do Espírito Santo como duma bebida celestial para que o demônio não se possa lançar sobre vós! Não deveis simplesmente unir-vos com o Espírito, mas deveis encher-vos Dele por meio de salmos, de hinos, de cânticos espirituais, com que hoje saciastes vossas almas.
Por essa razão confio em vossa virtude.
Possuímos uma sublime bebida inebriante! uma bebida que produz virtude e não inércia!
Qual a razão?
Ei-la: é uma bebida espiritual, pois, bebemos o Sangue Imaculado do Senhor! Essa bebida não causa embriaguez nem desleixo, não destrói nossa energia, ao contrário aumenta a nossa força! Não degrada mas eleva, infunde sobriedade, é objeto de veneração dos Anjos, amedronta os demônios, é honrada pelos homens, é o Amor do Senhor!!
Ouvi como Davi descreve essa bebida espiritual que agora está neste altar:
“Preparaste uma mesa diante de mim, à vista daqueles que me perseguem. Ungiste com óleo a minha cabeça e quão forte é o cálice que me embriaga!” [7].
Afim de que não assustásseis ao ouvir a palavra “embriaga” e não julgásseis que essa bebida produz fraqueza, ele frisou que a bebida era “forte”.
A nossa bebida é nova!
Ela dá força, domínio, poder!
Jorrou duma rocha espiritual!
Não altera a mente mas favorece o entendimento sobrenatural!
Inebriemo-nos desta ebriedade!
Afastemo-nos daquela outra, para não desonrar a festa atual!
O dia de hoje é dia de festa não só na terra mas também no céu; é dia de alegria na terra e no céu!
Pois, se por causa da conversão de um só pecador há alegria na terra e no Céu[8], muito mais júbilo haverá pela libertação do mundo inteiro das garras de Satanás!
Agora se exultam os Anjos, rejubilam os Arcanjos, e os Querubins e Serafins festejam conosco a mesma festa.
Não se envergonham de seus conservos, mas alegram-se com a nossa felicidade. Pois, se nossa alegria vem do Senhor, nossa felicidade será também a felicidade deles.
Para quê realçar que os nossos conservos participam conosco da mesma festa, se o próprio Cristo, Senhor deles e nosso, não julgou abaixo de sua dignidade reunir-se conosco na mesma festividade!
Que é que o prova?
“Tenho desejado ardentemente comer convosco esta páscoa”[9].
Se Cristo desejou reunir-vos na sua Páscoa, então evidentemente também na sua Ressurreição! Se os Anjos e Arcanjos se alegram e o Senhor nos une com todas as Potestades celestiais, que motivo para desânimo poderia haver?
Nenhum pobre se incomode com sua pobreza, pois a festa de hoje é de ordem espiritual! Nenhum rico se orgulhe de sua riqueza, pois com ela não pode absolutamente contribuir para essa festividade!
É só nas festas profanas que se vê grande intemperança, uma mesa repleta, gula, impudência, hilaridade, e toda espécie de pompa satânica!
Numa tal festa, é natural, o pobre sente-se humilhado e o opulento exaltado.
Por quê?
Porque o abastado serve uma mesa lauta e frui dos manjares mais finos; o pobre, porém, está na impossibilidade de ostentar tal luxo.
Hoje não há nada disso!
A mesa é uma só, tanto para o rico como para o pobre!
Ainda que alguém seja afortunado, com nada pode contribuir à Mesa. O pobre não participará menos desse Dom universal, apesar de ser pobre, pois o Dom provém de Deus!
Não há nada de estranho nessa igualdade do rico e do pobre. Há uma só Mesa para o rei que, coroado e vestido de púrpura, empunha o cetro e para o pobre que vive de esmolas. O rei e o pobre aproximam-se do Sagrado Dom com a mesma confiança, com o mesmo respeito. E muitas vezes acontecerá que o pobre se aproxima com maior respeito, porque o rei, preocupado com mil questões, qual navio batido pelas ondas, se mancha com muitos pecados!
O pobre, cuidando apenas do pão de cada dia, vivendo urna vida tranquila, incomplexa e isenta de preocupações, aproxima-se da Sagrada Mesa com muita segurança, qual navio ancorado no porto!
Além disso, o pobre passa vergonha nas festas mundanas e o rico se orgulha, não apenas por causa do luxo dos manjares, mas também por causa do vestuário!
O pobre, ao ver a preciosidade e a magnificência dos vestidos dos abastados, fica confundido e considera-se infeliz-em comparação com eles.
Na festa, porém, que hoje comemoramos, não há pobreza de vestuário, pois esse é o mesmo para todos, a saber, a veste batismal! “Pois todos os que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo”[10].
Portanto, não desonremos a presente festa com a embriaguez!
Nosso Senhor honrou a todos igualmente, ricos e pobres, servos e senhores.
Retribuamos ao Senhor sua benevolência para conosco.
A mais sublime retribuição consiste em ser puro e circunspecto. A festa e solenidade presentes não requerem dinheiro nem compras, mas bons propósitos e mentalidade sobrenatural. São estes os bens que estão à venda.
Oferecem-se não objetos materiais mas a palavra de Deus, os elogios dos antepassados, os louvores dos sacerdotes, a conformidade, a paz, a unidade!
Os bens são de ordem espiritual, logo também a paga!
Celebremos a festa magna e brilhante que comemora a Ressurreição do Senhor!
Ressurgiu o Senhor e com Ele o mundo inteiro!
Ele ressurgiu depois de romper os grilhões da morte! Ressuscitou a todos nós depois de nos livrar das correntes dos pecados.
Adão pecou e morreu.
Cristo não pecou e morreu!
Paradoxo assombroso. Aquele pecou e morreu. Este não pecou e morreu!
Para quê?
Para o Cristo, embora isento de pecados, poder por sua própria Morte arrancar o pecador mortal às garras da morte!
O mesmo acontece no mundo das finanças.
Alguém está endividado e não podendo liquidar suas contas, é encarcerado. Um outro que não é devedor possui os meios de pagar, liquida as dividas e o devedor fica absolvido.
É o que aconteceu com Adão.
Adão contraiu dívidas e não tinha com que pagar; por isso ficou no poder do demônio, Cristo não tinha dívida alguma nem estava no poder de Satanás; podia, porém solver a dívida de Adão.
Ele veio, derrotou a morte em favor do que estava subjugado pelo demônio e libertou-o.
Percebeis os benefícios da Ressurreição?
Fomos atingidos por urna dupla morte, logo esperemos por uma dupla ressurreição!
Jesus, porém, conheceu apenas “uma” morte e consequentemente urna só ressurreição!
— De que maneira?
— Vou explicá-lo.
Adão sofreu a morte da alma e do corpo; morreu
pelo pecado e pela natureza: “Em qualquer dia que comeres da árvore, morrerás indubitavelmente!”[11]. Embora no próprio dia não morresse da morte natural
mas do pecado, mais tarde morreu a morte natural.
Morreu primeiro da morte mais penosa, a do pecado, porque esta é a morte da alma; a outra é a do corpo.
Quando falo em morte da alma, não deveis pensar que a alma morre, pois, essa é imortal.
A morte da alma consiste no pecado e no castigo eterno. É por isso que Cristo diz: “Não temais os que matam o corpo, e não podem matar a alma; mas temei aquele que pode fazer perecer na geena tanto a alma como o corpo”[12]. O que está em perigo e resiste, está fora do alcance da perdição!
Disse há pouco que fomos atingidos por uma dupla morte, consequentemente necessitamos amos duma dupla ressurreição.
O Cristo morreu só uma vez, visto que não pecara; porém, essa única morte foi por nossa causa, pois que Ele não era réu de morte por não ter pecado.
Daí Cristo ressurgiu de urna só morte.
Nós sofremos a morte de duas maneiras e de duas maneiras ressuscitamos.
Ressurgimos primeiro do pecado. Fomos sepultados com Ele no Batismo e por Ele levantamo-nos ressuscitados do batismo.
Essa primeira ressurreição é a libertação dos pecados.
A segunda é a ressurreição do corpo.
Cristo agraciou-nos com a mais importante e acrescentou a outra de menos valor! Pois, a ressurreição da alma é muito mais sublime que a ressurreição do corpo, como é muito mais sublime ser livrado dos pecados do que tornar à vida corporal.
O corpo caiu por que pecara; se, portanto, a queda se originou do pecado, a ressurreição deve ter seu princípio no perdão dos pecados. Ressuscitamos pela ressurreição da alma, banindo a morte opressora do pecado e despindo-nos da veste antiga. Logo, não desesperemos da ressurreição do corpo!
A nossa ressurreição operou-se quando fôramos batizados; também os que foram julgados dignos de ser batizados esta noite — os belos cordeirinhos — ressuscitaram.
Anteontem Cristo morreu na Cruz; nesta noite Ele ressurgiu!
Anteontem estes neófitos estavam escravizados pelo pecado, mas nesta noite ressuscitaram!
Jesus morreu pela morte do corpo e ressuscitou pela ressurreição corporal! eles morreram pelo pecado e ressuscitaram livres do pecado!
A terra nos produz na primavera suas rosas, violetas e tantas outras flores; as águas fazem com que os prados se apresentem verdejantes e aprazíveis.
Não vos admireis de que as flores nasçam das águas, pois, elas não possuem essa força por si mesmas mas geram flores por lei divina.
No princípio dos tempos as águas geravam seres vivos: “Produzam, as águas répteis animados e viventes”[13]; cumpriu-se a ordem divina e uma criatura inanimada produziu seres animados.
Do mesmo modo surgem da água não seres viventes mas dons espirituais!
Naqueles tempos a água produzia peixes mudos e irracionais, agora peixes racionais e espirituais, peixes apanhados pelos Apóstolos! “Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens”[14]. Jesus falava naquele tempo da pesca presente.
O modo da pesca espiritual é realmente outro!
Os pecadores tiram os peixes da água, nós, porém, tiramo-los da água depois de tê-los submergido nela.
Na terra dos Judeus havia outrora um tanque.
Considerai a força da água desse tanque para constatar a pobreza dos Judeus e a riqueza da Igreja. Um anjo do Senhor descia no tanque e movia a água. Quando a água estava em movimento, um doente descia no tanque e ficava curado[15]. Um só por ano recuperava a saúde e imediatamente cessava a força milagrosa, não em virtude da pobreza do Doador mas por causa da pobreza espiritual dos que a recebiam.
O Anjo descia no tanque, movia as águas e um homem só ficava curado!
O “Senhor dos Anjos” desceu no Jordão, moveu as águas e curou a humanidade inteira!
Eis aí o motivo por que no caso do tanque o segundo, descendo depois do primeiro, não recuperava a saúde! a graça era concedida aos Judeus pobres e doentes!
Quando Cristo, porém, desceu no Jordão, o primeiro desceu e ficou curado e depois do primeiro o segundo, o terceiro, o quarto! Mesmo se descessem na água batismal dez, vinte, cem ou inúmeras pessoas, a graça não cessaria, a força milagrosa não acabaria, a água batismal não se tornaria impura!
Pois, o modo de purificação é novo, não é mais corporal!
Quando a água do tanque banhava muitos corpos, esta se tornava imunda. A água batismal, porém, quanto mais almas lava, mais pura fica!
— Percebes, homem, a sublimidade da Graça?
— Continua estimá-la!!
— Deve-te ser impossível levar uma vida de indiferentismo!
— Impõe-te a lei do perfeito cuidado a ti mesmo, lei de lutas e combates! Quem luta adquire um perfeito autodomínio!
— Permites sugerir-te um modo muito seguro de viver a vida perfeita? Expele de tua vida essas práticas aparentemente indiferentes que na realidade são ocasiões de pecado!
Na prática devemos distinguir entre atos pecaminosos e atos que, embora não pecaminosos, são ocasiões de pecado. Assim, por exemplo, rir-se não é pecado, mas tornar-se-á pecado quando ofende as regras da conveniência. Pois o riso provoca gracejos, estes provocam conversas indecentes, as quais levam a atos impuros, que, por sua vez, chamam o castigo e vingança de Deus. Para extirpar todo o mal, arranca-o pela raiz!
Queridos, se nos resguardarmos do indiferentismo, nunca praticaremos o que é proibido.
Muitos pensam que olhar para mulheres é coisa indiferente. No entanto, é do olhar que nasce o desejo infrene, do desejo a impureza, da impureza o castigo e a vingança divina!
Assim também parece que na vida efeminada não há perigo algum, contudo, é desta espécie de vida que se origina a embriaguez e seus males sem conta!
Extirpemos todo o princípio dos pecados!
Por isso deveis[16] cada dia frequentar o ensino cristão; celebramos sete dias em seguida o Santo Sacrifício, preparamo-vos a Sagrada Mesa, pregamos a palavra de Deus, ungindo-vos e armando-vos contra o demônio, que se tornou agora mais agressivo!
Quanto maiores forem os benefícios, tanto mais ferrenha será sua hostilidade!
Dizei-me: se o demônio não suportava ver no Paraíso um só homem, será que suporta ver muitos no Céu?
A fera está enfurecida; porém, não temais!
Possuís uma arma invencível, um gládio afiado; trespassai-a com essa arma!
Deus permitiu que se enfurecesse contra vós para conhecerdes melhor a força de vossa arma!
Assim como um excelente professor de ginástica, ao aceitar para a instrução atlética um candidato mal nutrido, enervado e raquítico, o unge e treina e lhe proporciona um belo físico e não lhe deixa sossego e o manda lutar para que conheça pela própria experiência quanto lhe aumentou a força, assim também procedeu Cristo convosco!
Ele podia tirar o demônio de vosso meio; permite-lhe, porém, hostilizar-vos para que fiqueis muitas vezes coroados, para que reconheçais a singularidade e a grandeza da força espiritual com que fostes revestidos no batismo!
Durante sete dias em seguida deveis frequentar o ensino cristão para informar-vos perfeitamente das lutas.
Além disso o batismo é um matrimônio espiritual! pois bem, as festas matrimoniais perduram sete dias. É com essa razão que ordenamos observar os sete dias das núpcias sacras.
A festividade do matrimônio cessa no sétimo dia, porém se quiserdes, podeis celebrar as núpcias espirituais durante toda a vida!
Acontece nos matrimônios que a noiva depois de um ou dois meses já não tem mais aquele amor apaixonado pelo noivo.
Isso não acontece nas núpcias espirituais! Quanto mais progride o tempo, tanto mais enamorados ficamos do Noivo, tanto mais amorosos os nossos amplexos, tanto mais espiritual a nossa convivência, sob a condição de sermos generosos!
Depois do matrimônio os corpos perdem sua juventude e se envelhecem; depois das núpcias espirituais a juventude substitui a velhice e essa juventude é perene, se quisermos. Paulo era um grande homem quando fora batizado, mas tornou-se muito maior ainda após o batismo, quando pregava aos Judeus e os confundia; depois foi arrebatado ao Paraíso e entrou no terceiro céu!
Nós também, se quisermos, podemos crescer e engrandecer a graça obtida no Batismo. Pelas boas obras esta se desenvolve e torna-nos mais brilhantes e refulgentes que a luz!
Se isso se der, entraremos com o Noivo no quarto nupcial em grande liberdade para fruir das delícias que Ele preparou aos que O amam!
Que assim seja para nós todos pela graça e amor de Nosso Senhor Jesus Cristo a quem sejam tributadas honra e adoração juntamente com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos!
AMÉM!
JOÃO CRISÓSTOMO. Sobre o Domingo da Ressurreição. In: Sermões de São João Crisóstomo. Trad. Pe. João Donato Van Hest, MSC. Escola Apostólica: São Paulo, 1950, p. 156-171.
[1] A homilia foi proferida em Antioquia, no dia da Páscoa; a primeira parte trata do encerramento do jejum corporal; a segunda discorre sobre a Ressurreição.
[2] Is XXIX, 9.
[3] I Tm V, 23.
[4] Ef V, 18.
[5] I Cor VI, 9-10.
[6] Ef V, 18.
[7] Sl XXII, 5.
[8] Lc XV, 10
[9] Lc XXII, 15.
[10] Gl III, 27.
[11] Gn II, 17.
[12] Mt X, 28.
[13] Gn I, 20.
[14] Mt IV, 19.
[15] Vede Jo V, 2 sq.
[16] São João se dirige nesta passagem aos neófitos que foram batizados na noite de Ressurreição.