Sobre a justiça na obra Os trabalhos e os Dias de Hesíodo

Hesíodo[1],  junto com Homero, formulou os fundamentos da educação helênica. Hesíodo também parte da estrutura mitológica de seus poemas para a transmissão de conhecimentos morais, mas, diferentemente de Homero, seus versos se debruçam sobre os temas da vida camponesa, junto ao homem simples, que trabalha no campo, e aí desenvolve os seus princípios morais mais íntimos. É de suma importância deixarmos claro que, nesse meio rural do campo, o homem trabalha as virtudes, e principalmente a da justiça, que o distancia dos animais irracionais, e o faz estar mais próximo das divindades.

Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo se utiliza dos mitos para designar o quanto mal faz o homem caso não pratique a justiça: a justiça segue seu rumo “chorando pela cidade e pelas habitações dos povos, vestida de névoas e trazendo males aos homens que a expulsam e a exercitam mal”[2]. Voltando alguns versos anteriores a este, observaremos que Hesíodo traz o exemplo do mito de Pandora, que relata uma ação de Zeus contra os homens, pelo fato de ter tido o fogo roubado por Prometeu que o entregou aos homens. Até então, os homens não tinham preocupações com os males, e estes males nem sequer faziam parte de suas vidas. No entanto, ao abrirem a caixa de Pandora, saíram dela todos os infortúnios possíveis, restando, lá no fundo da caixa, intacta, somente a esperança, e foi assim que Zeus deu aos homens o grande mal.

Na primeira parte de Os trabalhos e os dias, são relatadas algumas questões sobre o trabalho, e, entre os versos 213 a 247, Hesíodo faz uma reflexão sobre a justiça e a injustiça. Para iniciar, o poeta admite que a arrogância faz o homem se afastar da justiça. Hesíodo, ao aconselhar seu irmão Perse[3], o orienta a não dar ouvidos a arrogância, mas sim, escutar a justiça, pois é ela que ganha da arrogância. Hesíodo escreve ao irmão:

Ó Perse, escutai a justiça e não alimentai a arrogância: a arrogância é prejudicial ao homem fraco; nem mesmo o grande pode suportá-lo facilmente, na verdade ele mesmo permanece oprimido e enfrenta infortúnios. O outro caminho é melhor, rumo à justiça: a justiça no final do seu curso vence a arrogância, e só sofrendo o tolo aprende[4].

Aos que apresentam uma arrogância maligna e de ações injustas em seus corações, são, conforme Hesíodo, acometidos de grandes males através das punições de Zeus. O poeta também recorda que um único ato feito em prol de um mal, mesmo que seja a ação de apenas um homem, poderia acarretar em diversas sansões para a sociedade, como, por exemplo, a fome, a peste, mulheres inférteis, ou casas arruinadas pela vontade de Zeus, sendo ela forte suficientemente para derrotar um poderoso exército[5]. Ora, Hesíodo acredita piamente na justiça dos deuses, e sabe que Zeus agirá de forma justa, sem que nada passe despercebido pelos seus olhos, ao contrário da justiça dos homens, que, por vezes, é injusta e mal elaborada.

As explanações sobre a justiça de Zeus, colocadas anteriormente, são evidenciadas nas admoestações de Hesíodo aos juízes, pois estes devem ficar atentos às ações humanas, e às próprias ações, para que não sejam injustas, sem se importar com o respeito e temor aos deuses. Surge, então, a imagem da deusa Dike (Justiça), uma virgem que foi gerada por Zeus e que é venerada pelos outros deuses no Olimpo. Segundo Hesíodo, quando alguém provoca Dike, insultando-a tortuosamente, “ela imediatamente se senta com o Pai, Zeus filho de Crono, e denuncia as almas dos homens injustos para que o povo pague pela loucura dos juízes que meditam enganos e com palavras tortuosas desviam seus julgamentos para outro lugar”[6].

Para complementar suas admoestações aos juízes, Hesíodo faz ainda uma última advertência sobre os julgamentos e conselhos, e mais uma vez credita a esperança no julgamento de Zeus. Hesíodo continua:

Com isso em mente, trabalhai com retidão, ó juízes, devoradores de dons, e esqueçais para sempre os vossos julgamentos injustos. O homem prepara os males para si mesmo, que prepara os males para os outros; os maus conselhos são perniciosos para o próprio conselheiro. O olho de Zeus que tudo vê e tudo entende também vê essas coisas de cima, se quiser, nem lhe escapa qual é a justiça que é administrada em nossa cidade. Eu não gostaria de ser justo entre os homens, nem que meu filho fosse, porque é ruim ser justo quando o mais injusto obtém a melhor justiça; mas creio que o sábio Zeus não permitirá tais coisas[7].

A partir dos escritos de Hesíodo, a justiça deve ser cumprida por ser um bem, diferente da injustiça, que não deve ser colocada em prática por ser um mal. Porém, não podemos deixar que considerar duas questões da justiça no pensamento de Hesíodo: os homens devem ser justos apenas por temer o que poderia ocorrer mediante as ações injustas ou porque ela os torna melhores? Hesíodo considera as duas, pois os homens ficam longe da ira divina, e, por outro lado, se aproximam cada vez mais dos deuses, afastando-se e os tornando melhores do que os animais. O homem, ao praticar a justiça, não fica apenas imune às punições divinas, mas também é possibilitado a ele alcançar o maior dos bens, configurando-o à semelhança dos deuses[8].

O que foi dito acima, é salientado por Hesíodo já nos últimos versos sobre a Lei dos homens, no qual são reportadas algumas diferenças entre os homens e os outros animais comuns; entre os peixes, as feras e os pássaros não há justiça, por isso eles devoram uns aos outros, mas aos homens o filho de Cronos deu a justiça, a melhor de todas as coisas, e o maior entre os bens possíveis. Tendo a justiça e a praticando, o homem, respeitando os outros homens, pode alcançar “a harmonia, a estabilidade e a ordem, características próprias da vida divina”[9]. Aqui observamos a origem comum entre os deuses e os homens, pois há a deliberação humana. Note-se que Zeus não dá aos homens uma lei natural, ou seja, ligada intrinsecamente à natureza humana, como uma única opção, porém, o ser justo é condicionado numa perspectiva de escolha, na qual cada homem pode escolher ser justo ou injusto.

Todavia, enfatiza o poeta, que a melhor escolha é a justiça e ser um homem justo. Suas reflexões nos levam a analisar que a justiça é o que eleva a condição humana, tanto em honrarias e dignidades virtuosas, quanto no bem dos relacionamentos externos, e, por isso, a injustiça provoca a diminuição da condição humana, fazendo com que o homem aja como um animal, pois, “aqueles que conscientemente juram falsamente e dão falso testemunho, enganando a justiça, cometerão crimes irreparáveis e deixarão depois de si a prole cada vez mais obscura, enquanto os descendentes do homem que jurou a verdade florescerão”[10]. Portanto, o destino do homem dependerá tão somente de suas retas ou más escolhas, optando pela justiça ou pela injustiça, sempre se recordando que a aproximação aos deuses está na busca de uma origem comum através da prática da justiça.

Por fim, ressaltamos que praticar a justiça não é uma ação fácil ou sem renúncias, tanto que Hesíodo escreve ao irmão Perse sobre o caminho do bem, que é o mais excelente caminho a ser seguido, por mais que ele seja longo e difícil. Com isso, o homem bom é aquele que escuta os conselhos, e, se alguém age indiferente ao que foi aconselhado deverá ser considerado como um homem inútil[11].

Referências Bibliográficas

HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979.

LACERDA, B. A. A justiça poética de Hesíodo. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 91-103, jan./jun. 2010. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/prisma/article/view/2075/1755. Acesso em: 01 maio 2023.

Autor: João Luiz Santana Zago, estudante do 3º ano do Curso de Filosofia da FASBAM.

 

[1] Hesíodo, tendo vivido há aproximadamente 800 a.C., nasceu em Ascra, próximo de Helicon, na Beócia. Seu pai era um comerciante fracassado, e que buscou na vida paciente do campo e atrás dos rebanhos o sustento para a família. Conseguindo um certo conforto para a família, Hesíodo conseguia, além dos afazeres do campo, cuidando dos rebanhos, se dedicar à arte da poesia que aprendeu, provavelmente, com as rapsódias, quando frequentavam os espaços sagrados do Helicon. Cf. HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, p. 27.

[2] Cf. HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, p. 111. “Essa li segue piangendo per la città e per le dimore dei popoli, vestita di brume e portanto male agli uomini che la scacciano e male la esercitarono.” (tradução nossa)

[3] Ressaltamos aqui o contexto da obra escrita por Hesíodo, Os trabalhos e os dias, que foi pensada com uma função orientadora e de moralidade, na qual, Hesíodo tenta mostrar ao irmão Perse que prejudicá-lo na herança deixada pelo pai é um ato injusto, e procura convencê-lo de tal importuno. Por isso, ele se utilizará de variados mitos e exemplos da vida comum que deixem uma reflexão moral sobre a justiça.

[4] HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, p. 110. “O Perse, ascolta la giustizia e non alimentare la prepotenza: la prepotenza è dannosa all’uomo debole; nemmeno il grande facilmente la può sopportare, anzi egli stesso rimane oppresso e va incontro a sventure. Migliore è l’altra strada, verso la giustizia: la giustizia al termine del suo corso vince la prepotenza, e solo soffrendo lo solto impara.” (tradução nossa)

[5] HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, p. 111.

[6] HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, p. 113. “(…) essa subito s’asside supplice presso il Padre, il Cronide Zeus, e denuncia l’animo degli uomini ingiusti affinché il popolo paghi la follia dei giudici che meditano inganni e con tortuose parole sviano altrove i loro giudizi.” (tradução nossa)

[7] HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, 113-115. “Tenendo presente ciò, operate rettamente, o giudici, divoratori de doni, e dimenticatevi per sempre delle vostre unique sentenze. A se stesso prepara mali l’uomo che ad altri prepara mali; il cativo consiglio è pernicioso allo stesso consigliere. L’occhio di Zeus che tutto scorge e tutto comprende vede dall’alto anche queste cose, se vuole, né a lui sfugge quale sai la giustizia che si amministra nella nostra città. Non vorrei esser giusto fra gli uomini e nuppur che lo fosse mio figlio, perché è un male essere giusto quando il più ingiusto ottiene migliori giustizia; ma io credo che il saggio Zeus non permetterà tali cose”. (tradução nossa)

[8] Cf. LACERDA, B. A. A justiça poética de Hesíodo. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 91-103, jan./jun. 2010. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/prisma/article/view/2075/1755. Acesso em: 01 maio 2023. p. 99.

[9] Cf. LACERDA, B. A. A justiça poética de Hesíodo. Prisma Jurídico, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 91-103, jan./jun. 2010. Disponível em: https://periodicos.uninove.br/prisma/article/view/2075/1755. Acesso em: 01 maio 2023. p. 99. 

[10] HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, p. 115. “(…) chi invece coscientemente giurerà il falso e renderà falsa testimonianza, ingannando la giustizia commetterà irreparabile crimine e lascia dopo di sé la progenie sempre più oscura, mentre fiorirá la discendenza dell’uomo che ha giurato il vero.” (nossa tradução)

[11] HESÍODO. Le Opere e i Giorni: lo scudo di Eracle. Trad. Ludovico Magugliani. Itália: BUR, 1979, p. 115.

1 thoughts on “Sobre a justiça na obra Os trabalhos e os Dias de Hesíodo

  1. Ryath says:

    Esse pensamento de Hesíodo é valorizado sempre o bem.
    Jesus chamava as boas pessoas de justos.
    Jung, da Psicologia Junguiana ensina que as pessoas bos se preocupam com o que é justo e injusto, o que é bom e o que é mau, escolhendo, claro, o bem e a justiça sempre.

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