A convergência no pensamento de Pico della Mirandola

A Idade Moderna, na dimensão da produção de conhecimento, é mais conhecida pelas inovações, invenções e novidades que compõem o advento das ciências e das tecnologias que temos hoje. Mas seria equivocado considerar o espirito da época como completamente novo e em ruptura com o longo passado de tradições e correntes filosóficas do período medieval e clássico. É o que fica evidente ao ler as instigantes páginas do “Discurso pela Dignidade do Homem”, do jovem florentino Giovanni Pico dela Mirandola (1463-1494). O que se pretende aqui é demonstrar como o pensamento de Pico desejou abraçar as infinitas possibilidades não só de conhecimento, mas também apresentar como a convergência dos diferentes tipos de racionalidade é fecunda para a filosofia e para a dignidade do homem.

A partir do parágrafo 31, Pico apresenta uma série numerosa de filósofos e pensadores dos períodos da escolástica, patrística, helenismo e clássico, incluindo grandes nomes como Tomás de Aquino, Averróis, Agostinho, Platão e Aristóteles. Ao ler, poderíamos pensar que as diferentes escolas e as discussões ao longo do tempo são incompatíveis. Mas para Pico é justamente o contrário: “se acrescente que ao existir qualquer escola que invista contra dogmas válidos e que calunia causas boas e ingentes ela ilude, mas não abala a verdade, como o vento que ao soprar a chama não a extingue, pelo contrário a excita”[1]. É assim que o autor defende que a multiplicidade de pensamentos constrói a verdade, como a luz que ilumina a caverna platônica. Ler a tradição filosófica é um exercício fecundo de conciliação e intermediação entre os diferentes pensamentos e capaz de produzir as novidades que daí decorrem. O próprio Pico afirma que formulou 72 novas teses de física e metafísica a partir de uma leitura conciliadora entre Platão e Aristóteles[2]. Parece antever a dialética hegeliana como a marcha da construção humana ao nível racional, em que todas as dimensões são importantes, num processo de purificação e construção. Nomeadamente, Pico aponta que “a dialética ajustará a razão turbada entre os discursos contraditórios e os silogismos insidiosos”[3].

Outro ponto a se considerar é que, mesmo sendo um dos nomes do Renascimento e do período moderno em ascensão, Pico – em paridade com Giordano Bruno e outros renascentistas – admite teorias e sistemas de compreensão mitológicos, místicos e até mágicos como fontes autênticas de conhecimento. Nessa linha interpretativa, Pico cita sabedorias antigas como o hermetismo egípcio, a cabala judaica, o misticismo dos pitagóricos, as correntes neoplatônicas, o zoroastrismo iraniano, o culto geta a Zalmoxis. “Colocado de outra forma, os pontos de confluência relativos às tradições mencionadas na obra piquinana gravitam em torno a específicos núcleos de teor esotérico. Essa é a revitalizada intuição do Autor que precedeu seu projeto de Concórdia”[4]. Nessa miscelânea de tradições, Pico adota “hermenêuticas próprias”[5] para empreender seu projeto de convergência.

O conselho dele é que essa atitude filosófica é apta a produzir mais conhecimento, usando a imagem do campesino que deseja a terra fecunda e a também o marido que deseja a mulher fértil[6]. E é justamente a fertilidade que gera a vida digna do homem. Não é a intenção propor um homem como comentador ou compilador. O exercício da razão é capaz de gerar vida ao homem que, interposto no cosmos entre os animais o os anjos, é tanto mais digno e próximo da realidade divina quanto mais conhece e se desenvolve racionalmente. Afinal, pela razão, o homem é capaz das escolhas mais aperfeiçoadas na sua autodeterminação. Lacerda vai ponderar que nesse processo

o autor não se limita a dizer que o homem é livre para escolher seus próprios fins, mas que, ao escolhê-los, o homem encontra a sua própria essência. O homem não é apenas o “animal racional” capaz de escolher, mas o ser que está fadado a escolher. É como se Deus houvesse condenado o homem à escolha, dado a ele a capacidade de, por seus atos livres, tornar-se o que deve ser. Percebe-se, então, que o homem está acima dos animais não simplesmente por ser racional, mas porque a razão o impele em direção a algo que nenhum animal pode conseguir: a determinação do seu próprio ser.[7]

É irrecusável pensar em Sartre. O filósofo existencialista do século XX converge com esse pensamento ao propor que a existência precede a essência. Ou seja, o homem tem capacidade de se autodeterminar, com uma liberdade tomada como infinita. Em Sartre, o homem também constrói a si mesmo na liberdade e na racionalidade.

A multiplicidade de perspectivas em convergência no pensamento piquiano refere-se, em suma, a sua tese da dignidade do homem, que ao transcender cada um dos seus aspectos, em especial o racional, exerce sua liberdade na ascensão a Deus. É o que ele própria afirma em outra obra, De ente et Uno: “o processo de colher Deus não resulta em uma unidade que se determina e resolve para sempre, mas, sim, de um processo de unificação que procede ao infinito”[8].

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Autores: Felipe Gonzaga de Oliveira e Silveira, Eduardo Krasniak Ternouski, Mateus Santos da Cruz e Willon Chrystian de Lima. Estudantes da turma do 2º ano do Curso de Filosofia da FASBAM.

 

[1] DELLA MIRANDOLA, Discurso pela Dignidade do Homem. [recurso eletrônico]. Tradução por Antonio A. Minghetti. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2015. p.130.

[2] Ibid, p.135.

[3] Ibid, p.94.

[4] CASORETTI, Anna Maria. Pico Della Mirandola: o esoterismo como categoria filosófica. 2020. 192 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/handle/handle/23124. Acesso em 13 set. 2023. p.166.

[5] Ibid, p.177.

[6] DELLA MIRANDOLA, p.133.

[7] LARCEDA, Bruno Amaro. A dignidade humana em Giovanni Pico Della Mirandola – Bruno Amaro Lacerda. Revista Interdisciplinar do Direito – Faculdade de Direito de Valença[S. l.], v. 6, n. 1, 2017. Disponível em: https://revistas.faa.edu.br/FDV/article/view/17. Acesso em: 13 set. 2023.

[8] DELLA MIRANDOLA apud CASORETTI, p.179.

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