A eminente dignidade da pessoa humana em Emmanuel Mounier

O tema “pessoa”, durante o percurso da história passou por diversas análises, questionamentos e desdobramentos, sendo que cada época buscou consignar a significação que mais lhes caberia interpretar. Desde os pensadores antigos, tal conceito começara a ser forjado, o qual, ao longo dos séculos, passara por adaptações e releituras que puderam consolidar o entendimento sobre sua importante caracterização. Passando por Epíteto a Santo Agostinho, o termo pessoa fora modelado pela filosofia helenística até a filosofia cristã.

A pessoa humana, ante todo o seu desenvolvimento histórico, nas primeiras décadas do século XX, viu-se ameaça por correntes de pensamento ideológicas que acabavam por agredir em muitos aspectos a sua dignidade, tendo em vista poder a pessoa favorecer a complementação de seus anseios, sejam eles políticos, sociais, econômicos ou religiosos.

Em nome da pessoa humana e sob o signo dessa ideia, o personalismo se apresenta como análise do mundo moderno, impondo-se como uma proposta contra o seu estado de putrefação avançada, projetando uma saída para a tamanha crise através de uma “revolução personalista e comunitária”, fundamentada em uma fé cristã aceita para além de qualquer reserva e vivida sem compromissos[1]. A corrente personalista apresenta-se, pois, como uma reação de defesa contra toda atitude negadora da pessoa humana, quer seja o desconhecimento do homem real pelo pensamento, quer se tratar de seu esmagamento pelas estruturas políticas, sociais ou econômicas[2].

Como fenômeno histórico, o personalismo europeu, nasceu na França, com Emmanuel Mounier, e desenvolveu-se em torno da revista Esprit, cujo primeiro número remonta ao ano de 1932, baseando o conteúdo central do personalismo à ideia de pessoa, na sua inobjetividade, inviolabilidade, liberdade, criatividade e responsabilidade, de pessoa encarnada em um corpo, situada na história e constitutivamente comunitária[3].

Neste enfoque, em uma de suas principais obras sobre o movimento personalista, denominado O personalismo, datado de 1949, Mounier aborda com exatidão esta consciência fundada na realocação da pessoa humana longe de supostos devaneios que possa ser acometida.

Mounier na presente obra encara as dimensões da pessoa humana como sendo estas as estruturas do universo pessoal, se valendo das três dimensões bases do que entende ser as dimensões essenciais, quais sejam, encarnação, vocação e comunhão, elencando neste diapasão sete, quais sejam: existência incorporada, comunicação, conversão íntima, afrontamento, liberdade de condições, eminente dignidade e compromisso.

Estas estruturas não são elementos fixos de um novo modo de se cristalizar uma imagem da condição humana, mas são como que notas de uma melodia que é a existência humana no nível de sua apreensão pela intuição; são os temas orientadores e centrais que dirigem e explicam de modo expressivo o agir humano; são as dimensões existenciais da pessoa, as dimensões referenciais do mistério do ser pessoal, os pontos de referência através dos quais dele se pode aproximar[4].

A eminente dignidade figura como a sexta dimensão da pessoa humana, de acordo com pensamento do fundador do movimento personalista, expressa em O personalismo. Precipuamente, mais exatamente no capítulo VI, que tem como título “A eminente dignidade”, uma reflexão acerca da pessoa é feita: “haverá uma realidade para além das pessoas[5]”? Mounier responde que “o movimento que forma a pessoa também não se fecha sobre ela; mas indica uma transcendência que habita entre nós, e que não foge a uma qualquer forma de denominação[6]”.

Não se pode definir a pessoa de maneira precisa, pois esta pertente ao domínio do inefável. Presa a certo segredo, ela resiste a todas as análises, por ser mistério, paradoxo. Somente perdendo, ela encontra a si mesma; somente fixando os olhos sobre uma realidade superior à qual ela tende é que se pode apreendê-la[7].

Se a pessoa é feita para se superar a si mesma e se a transcendência é um movimento para o transpessoal, neste processo de personalização dos valores, algumas grandes direções devem ser seguidas para uma plena articulação na vida pessoal e que revelam a eminente dignidade do homem.

Mounier traça, neste anseio, como direções valorativas a felicidade, a ciência, a verdade como esboço de uma teoria personalista do conhecimento, os valores morais para a construção de uma ética personalista, a arte enquanto produção de uma estética personalista, a história e os valores religiosos dada a ligação do personalismo com o cristianismo.

A felicidade, em vista da realização humana, deve ser conjugada com os valores biológicos, tais como a saúde e vida e os valores econômicos na busca urgente por valores superiores. Do contrário, a busca da felicidade por si própria poderá conduzir a humanidade num vulgar caminho de traição.[8]

A ciência deve ser respaldada como importante contributo para a ascese pessoal, pois mostra-se resistente às tentações dos preconceitos, das certezas instintivas e do desaviso, sendo de máximo aproveitamento a reflexão científica.[9]

Uma esclarecedora teoria do conhecimento se constituiria por ideais personalistas, ou seja, um racionalismo não respaldado pelo impessoal, mas que atentasse ao real valor do homem sem minorá-lo. Segundo Mounier, “exatamente porque o homem é o ser que está sempre comprometido, o compromisso do sujeito que conhece, longe de ser obstáculo, é meio indispensável para o conhecimento verdadeiro[10]”.

Os valores morais, tais como a liberdade que conduz à moralidade, perfazem a construção de uma ética personalista. O universo pessoal define o universo moral e o coincide com ele. Contudo, Mounier adverte que a obsessão pela moralidade pode conduzir a pessoa a perca da liberdade, pois acaba por fazer um mal uso desta. Segundo o referido autor, “O sentimento de impureza, de sujidade pessoal, é válido, mas está demasiado próximo de uma preocupação egocêntrica de integridade, perde-se no sonho, sufoca-se no escrúpulo[11]”.

A arte enquanto produção de uma estética personalista encontra em Mounier respaldo, pois entende ser esta uma característica que deveria estar presente na vivência diária das pessoas. A arte, nominada como sublime, é “em toda a extensão da existência, a expressão sensível da íntima gratuidade da existência: compraz-se em desconcertar visões habituais, em lançar sobre os objetos familiares um raio de luz divina […][12]”. Em contrapartida, se a arte se posicionar atrelada à limitação pecuniária perde-se para complicação, para o enigma ou para o cálculo[13].

O valor comunicado à história é pertinente no trilhar personalista, visto que esta é construída pelo destino comum da humanidade. “Há uma história porque há uma humanidade[14]” alude Mounier. Diante dos condicionamentos oriundos do passar dos anos, o homem deve refleti-los para que diante da liberdade dos atores passados, retransmitam os valores e o sentido geral da história. Assim, mesmo o mundo ferido pelas duas grandes guerras, Mounier acredita que “o destino comum da humanidade é efetivamente para um conjunto de pessoas reunidas frente seus mais altos valores[15]”.

Por último, os valores religiosos, dada a ligação do personalismo com o cristianismo, precisam ser resguardados. Para Emmanuel Mounier, “o personalismo cristão sublinhará contra o individualismo religioso o caráter comunitário […], reencontrando em novas perspectivas o equilíbrio da objetividade[16]”.

Portanto, a reflexão sobre o referido tema conduz a interiorização, que perpassa o seu valoroso itinerário filosófico, tendo em vista o personalismo caracterizar-se pela centralidade estrutural da pessoa, manifestando-se contrário a todo movimento, ideologia ou corrente que contrarie a dignidade da pessoa humana, estabelecendo-lhe a primazia.

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Por: Fr. Bruno Coelho Gonçalves, SAC, aluno do 3º de Filosofia da FASBAM (2022)

 

REFERÊNCIAS

 

LIGNEUL, A. Teilhard de Chardin e o Personalismo. Tradutor: Marina Bandeira. Petrópolis: Vozes, 1968.

MOIX, C. O pensamento de Emmanuel Mounier. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1968.

MOUNIER, E. O Personalismo. Tradução: Vinícius Eduardo Alves. São Paulo: Centauro Editora, 2004.

REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Do romantismo até os nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991.

SEVERINO, A. J. Pessoa e existência: iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier. São Paulo: Ed. Autores Associados: Ed. Cortez, 1983.

[1] REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: Do romantismo até os nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991, p. 725.

[2] LIGNEUL, A. Teilhard de Chardin e o Personalismo. Tradutor: Marina Bandeira. Petrópolis: Vozes, 1968, p. 8.

[3] REALE, G.; ANTISERI, D. Op. cit., nota 1, p. 725.

[4] SEVERINO, A. J. Pessoa e existência: iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier. São Paulo: Ed. Autores Associados: Ed. Cortez, p. 45.

[5] MOUNIER, E. O Personalismo. Tradução: Vinícius Eduardo Alves. São Paulo: Centauro Editora, 2004, p. 85.

[6] Ibid., p. 85.

[7] MOIX, C. O pensamento de Emmanuel Mounier. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1968, p. 173.

[8] MOUNIER. Op. cit., nota 5, p. 91.

[9] Ibid., p. 92.

[10] Ibid., p. 92-93.

[11] MOUNIER. Op. cit., nota, p. 95.

[12] Ibid., p. 96.

[13] Ibid., p. 96.

[14] Ibid., p. 97.

[15] Ibid., p. 98.

[16] Ibid., p. 99.

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