A concepção de consciência na filosofia hegeliana

O idealismo alemão

Para tratarmos da concepção de consciência em Hegel, devemos considerar aspectos fundamentais da formação de sua filosofia. Portanto, não é conveniente desassociar o pensamento de nenhum filósofo de seu contexto histórico-filosófico, visto que muitas de suas contribuições e sistemas filosóficos foram elaborados para responderem questões relevantes e pertinentes à época. Neste sentido, e se referindo à concepção de homem hegeliana, Lima Vaz, ressalta que foram justamente as inúmeras correntes, sua confluência, seus temas e elementos conceptuais que motivaram o pensamento hegeliano. A partir delas pode plasmar uma síntese abrangente e harmoniosa.[1]

O sistema dialético de Hegel e sua noção acerca do homem decorrem e reúnem traços do racionalismo e romantismo, da herança clássica e cristã, e do reencontro com a Ética e a filosofia política clássica.[2] O racionalismo que surge no século XVII foi compreendido como uma corrente que enaltecia o uso da razão e os procedimentos racionais frente às crenças religiosas, isso tomando o uso do termo em um sentido geral. O termo racionalismo foi também utilizado no período moderno relacionando-se à teoria do conhecimento propriamente dita. O Romantismo, dier Romantik, por sua vez, nasce em um cenário de ruptura revolucionária, sendo compreendido como movimento espiritual, ou da sensibilidade, cujo primado era o do sentimento sobre a razão. Se desenvolve formando ideias na Europa ao longo do século XVIII.

Em linhas gerais, por mais que não seja fácil definir ou unificar características, observado as múltiplas manifestações e transformações nos diversos países europeus, destacamos no presente estudo o Eu sensível, que de maneira categórica se sobressai ao Cogito Racional; o senso íntimo sobre a universalidade lógica; uma rejeição notória do classicismo, assim procedendo, a antropologia romântica, em oposição à clássica (platônica), valoriza no homem o particular como se exprime na sensibilidade, na manifestação de suas emoções. O indivíduo não mais é definido pelo cogito racional, que de certo modo o une à razão universal, mas antes, determina-se pelo sentimento do Eu que o leva a conectar-se com o todo orgânico.

Em suma, pode ser apontado o que constitui o “estado de espírito”, o comportamento psicológico, o ethos, ou marca espiritual do homem romântico. Todo o movimento do romântico, como retorno à tradição, da consciência como manifestação imediata da Verdade ao homem. A elaboração filosófica das ideias sobre o homem e que impelem Hegel à sistematização de tal concepção, se constroem a partir do idealismo alemão, que recolhem elementos da tradição racionalistas.

Hegel, idealista alemão, toma como suporte teórico dois pensadores Platão e Immanuel Kant, que admitem a realidade das ideias e dos universais como antecedentes lógicos. Retira de Platão a ideia de que os universais se objetivam no mundo e de Kant a concepção das categorias ou conceitos puros de carácter a priori, já que segundo ele, a explicação do mundo é anterior a ele. Admite as categorias, mas depois fundamenta seu pensamento não apenas na apresentação de Kant em relação às categorias, que são condições do mundo, mas na explicação de sua origem.

Por conseguinte, Hegel, por meio de sua obra Fenomenologia do Espírito pretender dar respostas à grande dúvida racional deixada pela Crítica da Razão Pura de Kant, a saber, entre a cisão entre a ciência do mundo como fenômeno, obra do Entendimento, e do conhecimento do mundo como absoluto, ou do incondicionado, em outras palavras, a coisa em si, que permanece como ideal da razão.[3] Na próxima seção deste capítulo desenvolveremos a concepção hegeliana de consciência.

A consciência-de-si

Segundo Lima Vaz, o primeiro título escolhido por Hegel para sua obra foi Ciência da Experiência da Consciência, pois sua intenção para a Fenomenologia do Espírito é articular com um fio de um discurso científico as figuras do sujeito ou da consciência que desenham no horizonte do seu afrontamento com o mundo objetivo[4].  A alma real graças a exterioridade, ao hábito de sentir e do seu sentimento de si, passar a recordar-se de si e relacionar-se consigo mesma. Passa, deste modo, a pensar um mundo que exterior. Este é o característico estágio do Espírito Subjetivo: a consciência.

A Fenomenologia do Espírito tem como ponto de partida o sujeito cognoscente e a verdade do objeto. Este sujeito cognoscente é consciente, e busca possuir a verdade do objeto, e por sua vez, objeto de uma experiência na qual o sujeito aparece a si mesmo como instaurador e portador da verdade do objeto.[5] Em outras palavras, a consciência, a partir da experiência de um saber que lhe é exterior se suprime como simples consciência de um objeto e passa para a consciência de si como verdade mais profunda: a verdade de si mesmo. O objeto passa a ser a verdade da própria consciência, pois a assume as características da consciência de si, sendo que a figura da consciência-de-si é o desejo.

A consciência-de-si é reflexão a partir do ser do mundo sensível e do mundo da percepção[6], e é, essencialmente um retorno, a partir do ser-outro (mudo sensível).[7] Há estágios, segundo Hegel, de elevação da certeza à verdade. Consciência em geral, que tem o objeto exterior apenas como objeto; a autoconsciência que tem o eu como objeto do pensamento; e por fim, a unidade da consciência ou da autoconsciência quando o ser e o pensar se tornam idênticos e o Espírito contempla o conteúdo do objeto como a si mesmo. Salienta, Hegel, desmontando a relação da consciência com o Outro na elevação da Verdade:

Com efeito, o Em-si é a consciência, mas ela é igualmente aquilo para o qual é um Outro (o Em-si): é para a consciência que o Em-si do objeto e seu ser-para-um Outro são o mesmo. O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma; defronta um Outro e ao mesmo tempo o ultrapassa; e este Outro, para ele, é apenas ele próprio; Com a consciência-de-si entramos, pois, na terra pátria da Verdade.[8]

Por conseguinte, a consciência tem agora, como consequência, um duplo objeto: um, o imediato, o objeto da certeza sensível e da percepção, marcado com o sinal do negativo, e o segundo objeto é ela mesma, a essência verdadeira, e que de início só está presente na oposição o objeto. Na Fenomenologia do Espírito, faz uma exposição do surgimento da consciência e consciência-de-si em termos de uma luta por reconhecimento, no qual, a consciência de si é descoberta através do reconhecimento de outra consciência de si.[9] Portanto, na filosofia da consciência de Hegel ele relacionou a consciência que envolve uma relação com um objeto e consciência-de-si, que envolve a relação entre um sujeito e uma outra consciência-de-si. O sujeito tem consciência-de-si a partir do momento que se depara com o outro.

Além disso, cabe muito bem explicitar, que a consciência-de-si é desejo e, a essência do desejo é um Outro. No entanto, a consciência-de-si é absolutamente para si e somente através do suprassumir do objeto, suprassumir que por ser a verdade, deve tornar-se para consciência-de-si sua satisfação. Ela somente encontra satisfação quando o objeto leva a cabo a negação de si mesmo, nela.[10] Neste sentido, a satisfação do desejo é a reflexão da consciência-de-si sobre si mesma.

Uma consciência-de-si, diante de outra consciência-de-si, por meio de uma tensão gera o desejo pelo reconhecimento. O sujeito está diante do diferente e por meio da percepção sensível – da consciência de si – sabe que está diante do diferente. O sujeito pensa, determina esta coisa, modifica esta coisa, em outras palavras, a supera. O verdadeiro é o vir a ser de si mesmo que tem como princípio e que só é efetivo mediante sua atualização e seu fim.

Levando em consideração o que até agora foi exposto sobre a filosofia da consciência de Hegel, podemos destacar ainda que, ambas as consciências são independentes, posto que cada um é para si e para o Outro, essência imediata para si essente, que ao mesmo tempo só é para si através da mediação. Eles se reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente. Este movimento-de-si representa o agir de uma delas, mas ao mesmo tempo é o agir de outra, em seu duplo sentido, pois a outra é também independente, não há nela que não seja mediante ela mesma. Isso vemos na dialética do senhor e do escravo explicitada pelo filósofo e que trataremos na sessão que se segue.

A independência e dependência da consciência-de-si: dominação e escravidão

A consciência-de-si é em si e para si quando e porque é em si e para si para uma Outra, ou seja, como algo reconhecido.[11] Ela não mais vê o Outro como essência, mas a si mesma que se vê no outro. No entanto, tem a essência de ser infinita, ou de ser o contrário da determinidade da qual foi posta. A consciência-de-si é um ser para si simples, ou seja, ainda não é para o Outro, pois para ele ainda é objeto inessecial, marcado com sinal negativo. Ao mesmo tempo, o Outro é também um consciência-de-si, e isso marca o confronto. O sujeito envia seu desejo e espera a aprovação da outra consciência, pois se procura no outro, se vê no outro. É isto é sabido pelo sujeito, porém, não sabe que sabe, ou seja, é um ato inconsciente do sujeito. Para consciência-de-si há outra consciência-de-si, e são duas consciências-de-si que se afrontam.

Só é para si quando há essa passagem para outro, esta mediação, que se endereça o desejo. O sujeito vê no outro uma possibilidade, por isso vê-se no outro a verdade que na realidade é do próprio sujeito, e não do outro. Hegel, por meio da dialética do senhor e do escravo descreve a necessidade da mediação entre as consciências, pois, precisamos um do outro, neste sentido, o senhor só se reconhece como senhor diante do escravo, e o escravo na medida que está diante do senhor.

Ora, no que diz respeito a este confronto de consciência, são dois os momentos que figuram as posições opostas, uma consciência independente da qual o ser-para-si é a consciência; e outra, a consciência dependente da qual a essência é o ser para o Outro. Hegel, afirma:

O senhor é a consciência para si essente, mas já não é apenas o conceito desta consciência, senão uma consciência para si essente que é mediatizada consigo, por meio de uma outra consciência, a saber, por meio de uma consciência a cuja essência pertence ser sintetizada com um ser independente, ou com a coisidade em geral. O senhor se relaciona com estes dois momentos: com uma coisa como tal, o objeto do desejo, e com a consciência pela qual a coisidade é o essencial. [12]

Primeiramente esta afirmação é marcada pelo (Der Heer ist), ou seja, o senhor é, ele é a consciência para si essente – em outras palavras – é uma pura consciência de si que se põe, e uma consciência não totalmente para si, mas para um outro: esta é a consciência essente, ou consciência na figura da coisidade, em outras palavras, o senhor e o escravo.  O que marca este primeiro momento é que ambos são desiguais e opostos.

Cada um é para si e para o Outro, essência imediata para si essente, que ao mesmo tempo só é para si através da mediação. Eles se reconhecem como reconhecendo-se reciprocamente. Só é para si quando há esta passagem para outro, mediação, no qual está destacado na passagem “senão uma consciência para si essente que é mediatizada consigo por meio de uma outra consciência”, e justamente por esta mediação que se endereça o desejo procurando o reconhecimento. Melhor ainda, na realidade precisamos um do outro, pois o senhor só se reconhece como senhor diante do escravo, e o escravo na medida que está diante do senhor. É pelo meio termo, pela passagem, que estes dois extremos vão se extravasar. O escravo espera do senhor o reconhecimento, e o senhor, por sua vez, espera ser reconhecido. O outro também é uma consciência de si, que também está diante de outra consciência de si. O desejo de uma consciência necessita do desejo da outra.

Por fim, esta é a dinâmica que marca o desejo do senhor e do escravo, é por meio do ser independente que o senhor se relaciona mediatamente, pois justamente ali o escravo está retido, essa é a sua cadeia, não pode abstrair-se na luta, e por isso se mostrou dependente, por ter sua independência na coisidade. Em última análise, o senhor é o escravo do escravo. O senhor vê o escravo como uma coisa, como um dado bruto da realidade. O escravo, por sua vez, está travando uma luta de vida e de morte: o próprio desejo do senhor depende dele.

Considerações finais

Efetivamente, a consciência não pode ser compreendida apenas no sentido psicológico, mas em sua análise deve ser levada em consideração também seu emprego na filosofia, visto que, vários filósofos se utilizaram do significado de consciência para o desenvolvimento de sua filosofia. No entanto, o sentido agregado ao campo filosófico não apenas refere-se ao estado cônscio do individuo de si mesmo, mas relaciona-se à consciência do objeto e a intencionalidade da própria consciência no processo epistemológico.

No que diz respeito à filosofia de Hegel, a consciência é parte fundamental de seu sistema filosófico, observada por nós a relevância por ele empregada ao termo e abrangência de seu significado. Para Hegel, consciência é o ponto de partida de sua filosofia e fornece todo o conteúdo. Neste sentido, a Fenomenologia do Espírito é o percurso que a consciência faz ao espírito.

Com efeito, foi apresentado no presente artigo a concepção de consciência-de-si, que é compreendia como a reflexão a partir do ser do mundo sensível e do mundo da percepção[13], e é, essencialmente um retorno, a partir do ser-outro (mudo sensível).[14] Por conseguinte, o sujeito tem consciência-de-si a partir de um Outro, de uma outra consciência-de-si e por meio desta tensão gera o reconhecimento. Há uma saída do sujeito para outro sujeito. O outro, por sua vez, envia sua palavra. O que é enviado, é por assim dizer, transformando.

Portanto, duas consciências-de-si tem que se anular para que ela volte a si mesmo transfigurada, modificada a partir da palavra do outro: a determinação. Na dialética do senhor e do escravo, o senhor vê o escravo como uma coisa como um dado bruto da realidade. Mas, o escravo tem um desejo. Ele – o escravo – não sabe, pois isso é inconsciente, que o senhor necessita dele para ser reconhecido como senhor. O escravo está travando uma luta de vida e de morte: o próprio desejo do senhor depende dele. Esta é a dinâmica que marca o desejo do senhor e do escravo. Esta é a dialética da dinâmica de vida e de morte.

Autor: Fr. Arielton Santos, estudante da turma do terceiro ano do Curso de Filosofia da FASBAM e religioso da Sociedade do Apostolado Católico (Padres Palotinos)

 

[1] Cf. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991. p. 117.

[2] Cf. Ibid., p. 112.

[3] Cf. HEGEL. G.W.F. Fenomenologia do Espírito. In. MENESES, Paulo. Pensamento Humano. 5 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p.10.

[4] Cf. HEGEL. G.W.F. Fenomenologia do Espírito. In. MENESES, Paulo. Pensamento Humano. 5 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p.10.

[5] Cf. Ibid., p. 12.

[6] Cf. Ibid., p. 120.

[7] Cf. Ibid., p.15.

[8] Cf. Ibid., p. 119-120.

[9] Cf. CAYGILL, Howard. Dicionário de Kant; tradução, Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000, art. consciência de si.

[10] Cf. HEGEL. G.W.F. Fenomenologia do Espírito. In. MENESES, Paulo. Pensamento Humano. 5 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p.124.

[11] Cf. HEGEL. G.W.F. Fenomenologia do Espírito. In. MENESES, Paulo. Pensamento Humano. 5 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p.126.

[12] Cf. Ibid., p.130.

[13] Cf. HEGEL. G.W.F. Fenomenologia do Espírito. In. MENESES, Paulo. Pensamento Humano. 5 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 120.

[14] Cf. Ibid., p.15.

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