O Furto das Pêras e o Amor ao Desejo em Santo Agostinho

O livro Confissões é uma das obras de caráter autobiográfico mais completa na literatura. Nela se convergem relatos interpretados a partir de seus aspectos filosóficos, assim como teológicos. Agostinho (354-430), no segundo livro desta obra, dedica-se aos relatos de sua adolescência. Em uma das partes dessa seção, ele se empenha em relatar o furto das pêras. Demonstra exaustiva preocupação na análise que o faz concluir que naquele ato obteve um gozo, mas que provinha da maldade do ato, e não em vista da necessidade. Identificando alguns pontos fundantes de seu pensamento pós-conversão, somos capazes de pinçar desse episódio um importante questionamento filosófico.

Recorrendo à circunstância, devemos lembrar que o ato se tornará condenável após sua adesão à fé cristã, mas apresenta ao longo do texto grande consciência já desde aquele momento de um incômodo, como de um infrator que percebe a imoralidade de seu ato. Agostinho em sua mocidade, acompanhado de seus amigos, uma vez caminhando próximo à uma vinha se depararam com uma pereira carregada de frutos. Após horas de divertimento pelas praças e ruas, se deram à ideia de sacudir a dita árvore. Tiraram-lhe uns frutos em quantia significativa e, tendo-os provados alguns, desperdiçaram a maior parcela, lançando-a aos porcos. O autor diz: “Nosso prazer era apenas praticar o que era proibido”[1].

A questão que urge é, evidentemente, o prazer presente numa ação moralmente proibida. A moral em Agostinho apresenta similaridade com a formulação – que lhe é anterior – de uma lei natural. Para o filósofo o bem supremo é o Deus bíblico que a tudo criou, assim como aquele Deus messiânico encarnado. Eflui, assim, uma referência normativa a qual todos os seres humanos possam se dirigir na confecção de suas leis morais. A lógica é que, sendo um Deus com inúmeras qualidades – repetidas vezes sublinhado seu caráter inefável, daquele que não se pode dizer – e tendo criado a humanidade à sua semelhança, o esforço é exatamente por promover uma ação que seja humana, mas com similitude divina. A isso o autor se refere como uma lei inscrita no coração do homem[2].

Tendo dito isso, é possível entender que furtar algo – o que já constitui uma aquisição ilegal de posse alheia – no pensamento agostiniano configura-se em um pecado moral. Ao dizer sobre as pêras, o autor ainda deixa claro sua inferior qualidade, contrastadas àquelas que lhe tinha em abundância. Em outros termos, significa dizer que entre a realidade mais bela e saborosa – no caso dos frutos que tinha à sua disposição – o desejo se voltou para a oposta e que não lhe pertencia. Ou seja, uma escolha tomada apenas do desejo de posse, e não pelo fruto obtido.

O desejo constitui em sua filosofia, assim como para o estoicismo, uma brecha para o descontrole emocional e, consequentemente uma entrega desmedida aos sentimentos apaixonados, que acaba configurando o homem num animal sem razão e absorvido por uma espécie de hedonismo. O que no pensamento agostiniano é inconcebível e pecaminoso, ainda que atraente. Ao se perder em satisfações que passam, a pessoa não aspiraria ao bem verdadeiro, que não passa. Em suas palavras: “Existe certo atrativo num corpo belo, no ouro, na prata e em todas as coisas; entre o tato e o objeto existe uma sorte de harmonia de grande importância. […] Na verdade esses bens inferiores também satisfazem, mas não como satisfaz o meu Deus”[3].

Percebemos que a preocupação que recai sobre sua inconsequência adolescente, que por vezes é irrelevante para a maioria, em Agostinho produz o efeito de uma inflexão interior. Diz ainda sobre a importância de favorecer-se de boas companhias, pois, quando são más – como aqueles que outrora contribuíram para o furto – pode a pessoa querer realizar uma ação em virtude de participar do círculo, num embalo eufórico, ao passo que sozinha não teria a coragem de realizá-lo. É o amor pelo desejo, e consequentemente pelo mal que dele possa derivar, tratado de maneira vil e sem critérios que pode produzir o desarmônico da vida e a perda de sentido.

[1] AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997. Coleção Patrística, p. 55.

[2] Ibidem, p. 55.

[3] Ibidem, p. 56.

Autor: Leonardo Pablo Origuela Santos, estudante do 1º ano do curso de Filosofia da FASBAM e seminarista da Ordem de Santo Agostinho.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo