“O Senhor está vindo e quem não O temerá? Quem será capaz de comparecer perante o seu rosto? Minha alma, prepare-se para esse encontro”.

(Ode 3 do Cânon das Matinas do Domingo da Dispensa da Carne)

A parábola do Filho Pródigo, lida no domingo precedente, retrata de forma simbólica a insondável misericórdia de Deus que aceita até mesmo o maior pecador que se arrepende e pede perdão pelos seus pecados. Contudo, prevenir o homem de pecar com ousadia e presumir na misericórdia de Deus, a santa Igreja nos dois cenários avisa: o dia do Terrível Julgamento e o banimento de nossos Primeiros Pais, Adão e Eva, do paraíso. Essas duas cenas assombrosas representam a justiça de Deus em toda sua severidade. O Evangelho do Domingo da Dispensa da Carne descreve o dia do Terrível Julgamento, enquanto o Domingo da Dispensa dos Laticínios lamenta a expulsão de nossos Primeiros Pais do paraíso.

No Domingo do Filho Pródigo a Igreja nos fala: Filhos rebeldes, saiam do caminho de pecado e com toda humildade e arrependimento retornem à casa do pai, para nosso Pai celeste que é infinitamente misericordioso e Ele também os perdoará. Os Domingos da Dispensa da Carne e dos Laticínios, por outro lado, nos avisa em tons ameaçadores: O Senhor Deus não é apenas infinitamente misericordioso, mas também infinitamente justo, assim sendo, não brinquem com o pecado, mas temam a mão severa da justiça e punição de Deus.

O dia do Julgamento lembra a todos nós sobre a rigorosa e abrangente consideração que nós devemos ter em relação a nossa vida. A rápida e muito severa punição de Deus que caiu sobre nossos Primeiros Pais por causa de um único pecado grave deveria nos convencer que com Deus não há jogos a jogar. Ambos os domingos, portanto, apontam para nós a necessidade de mudança de vida, arrependimento dos pecados, jejum e penitência, só assim poderemos esperar por ter a misericórdia de Deus no dia do Juízo Final.

Domingo da Dispensa da Carne

O que entendemos por “dispensa da carne”?

A semana seguinte ao Domingo do Filho Pródigo é chamada Semana da Dispensa da Carne e termina no domingo chamado Domingo da Dispensa da Carne. O Domingo da Dispensa da Carne é o último dia em que ainda era permitido comer carne antes da Grande Quaresma. É claro que nós estamos falando aqui do tempo em que o Grande Jejum era observado rigorosamente.

O serviço do Domingo da Dispensa da Carne:

O Domingo da Dispensa da Carne é também chamado o Domingo do Juízo Final. Neste dia o Evangelho de Cristo fala do Juízo Final, da recompensa dos justos, e a eterna punição do perverso. Todo o serviço deste dia é dedicado ao Juízo Final. Lembrando a maneira em que o Juízo Final será conduzido, este serviço é designado para nos preencher de temor salutar, de arrependimento de nossos pecados, e enfatizar a importância de boas obras, especialmente as obras de misericórdia.

Ninguém deve escapar desse Juízo. Todos os nossos atos serão expostos e recompensados ou punidos. Isto é claro na seguinte estrofe, tomada das Vésperas Solenes deste domingo: “os livros serão abertos e os atos dos homens serão revelados diante do intolerável tribunal: todo o vale de arrependimento deve ecoar com o som temerário de lamentação, como todos os pecadores, chorando em vão, são enviados pelo seu justo juízo para um tormento eterno. Por isso, nós te suplicamos, compassivo e amado Senhor: poupe-nos que cantamos seu louvor, pois apenas vós sois rico em misericórdia”.

“As trombetas soprarão, as sepulturas serão abertas e toda humanidade ressuscitará estremecendo. Aqueles que fizeram o bem regozijarão de alegria, esperando para receber sua recompensa, enquanto que aqueles que fizeram o mal muito estremecerão, gemendo e abalados, à medida que forem separados dos eleitos e enviados ao sofrimento. Por isso, Senhor da glória, sejas compassivo para conosco e nos faça dignos de sermos considerados entre aqueles que o amam”.

Todos aparecerão no Juízo Final onde não serão honrados como pessoas, como o seguinte hino do cânon do serviço das Matinas deste domingo deixa claro: “o dia está se aproximando, já na porta é o julgamento! Alma, onde reis e príncipes, o rico e o pobre juntos, onde todas as pessoas serão julgadas e receberão de acordo com suas ações”[1].

Domingo da Dispensa dos Laticínios

O que entendemos por “dispensa dos laticínios”?

A santa Igreja gradualmente nos prepara para o jejum, permitindo-nos comer carne pela última vez no Domingo da Dispensa da Carne. Durante a Semana da Dispensa dos Laticínios, contudo, ela nos permite comer apenas produtos lácteos. Assim como nos despedimos da carne no Domingo da Dispensa da Carne, assim também nós nos despedimos dos produtos lácteos no Domingo da Dispensa dos Laticínios. Por isso, o nome Domingo da Dispensa dos Laticínios. Nosso povo chamava essa semana de semana do queijo ou semana da manteiga. Este domingo é o último dia para divertimento pré-quaresmal.

Na Europa Ocidental nosso divertimento pré-quaresmal é chamado de carnaval. Uma palavra derivada das palavras italianas carne vale que literalmente significa: carne, adeus! Na Igreja Latina, o Grande Jejum inicia na quarta-feira da Primeira Semana da Quaresma, ou Quarta-feira de Cinzas. Neste dia, cinzas são polvilhadas nas cabeças dos fiéis como um sinal de penitência. Na Igreja Latina a carne pode ser comida e o divertimento é permitido até esse dia. Em alguns lugares este divertimento é muito descomedido e barulhento.

A prática da Semana da Dispensa dos Laticínios e do Domingo da Domingo da Dispensa dos Laticínios é muito antiga. Foi mencionada por Teófilo, o patriarca de Alexandria (m. 412). Contudo, é sabido que mesmo antes dessa época a Semana da Dispensa da Carne e o Domingo da Dispensa da Carne já haviam sido estabelecidos. O sinaxário do Sábado da Dispensa dos Laticínios estabelece que na opinião de alguns escritores a Semana da Dispensa dos Laticínios recebeu a força de lei sob o imperador grego Heráclio (610-641). Por seis anos ele travou uma guerra com o rei persa, Cosroes, sem sucesso. Finalmente, ele fez uma promessa que se ele vencesse a guerra, ele se absteria de comer carne por uma semana inteira antes do Grande Jejum.

No sábado anterior ao Domingo da Dispensa dos Laticínios, a fim de nos dar um exemplo e um incentivo para jejuar e fazer penitência, a santa Igreja celebra a memória daqueles homens e mulheres que, antigamente, dedicaram suas vidas à oração, jejum e penitência nos mosteiros ou como eremitas no deserto.

O serviço litúrgico da Semana da Dispensa dos Laticínios inicia mais e mais para incorporar o tema do jejum, especialmente nas quartas-feiras, sextas-feiras e domingos. Nas terças-feiras da Semana da Dispensa dos Laticínios durante o serviço ritual das Vésperas, reverências e prostrações são prescritas que continuam durante todo o período quaresmal.

A Cerimônia de Perdão no Domingo da Dispensa dos Laticínios

Antigamente nos mosteiros orientais um belo costume existia em que o rito de perdão mútuo no Domingo da Dispensa dos Laticínios era realizado. Este rito de perdão era realizado à noite, seguindo uma modesta refeição. Todos os monges na presença dos fiéis pediam perdão uns aos outros pelas ofensas passadas, então se abraçavam, e davam uns aos outros o ósculo da paz. Os fiéis faziam o mesmo entre eles. Em alguns lugares, enquanto o rito de perdão era realizado, a estrofe da Páscoa (Ressureição) era cantada: “hoje a Páscoa sagrada foi apresentada para nós…”. A última estrofe termina com um pedido de perdão mútuo: “e vamos nos abraçar uns aos outros e dizer: ‘Irmãos’ até para aqueles que nos odeiam, e vamos perdoar todas as coisas…”. O canto desta estrofe da Páscoa (Ressurreição) era para exprimir que assim como durante o Tempo Pascal, então agora no limiar do Grande Jejum, nós devemos mutualmente pedir perdão pelas ofensas por amor a Cristo que jejuou, sofreu, e ressuscitou por nossa causa.

Esse emocionante rito de perdão era ainda observado no Mosteiro de Kyiv-Pechersky até os comunistas assumirem o governo. Aqui também, os monges primeiro tinham uma pequena refeição pré-quaresmal, depois que todos os superiores e monges vestiam seus mantos e seguiram para a igreja. Todos os superiores do mosteiro, do mais alto ao mais baixo, ficavam lado a lado no meio da igreja e toda a comunidade monástica, que consistia em várias centenas de membros, um por um se aproximavam dos superiores, então se ajoelhando, eles beijavam uns aos outros três vezes enquanto diziam: “Perdoa-me, Padre” ou “Perdoa-me, Irmão”. Durante este tempo, o coro cantava a estrofe tomada das Vésperas Solenes do Domingo da Dispensa dos Laticínios: “Adão sentou ao oposto do paraíso lamentado sua nudez…”. Depois de completar a cerimônia, todos partiam em silêncio.

Verdadeiramente, estes quatro domingos pré-quaresmais possuem um profundo significado para nossa vida espiritual. Para quem bate em seu peito como o Publicano fez e aprende a humildade de seu exemplo; quem aprende da parábola do Filho Pródigo a confiar na misericórdia de Deus; quem no Domingo da Dispensa da Carne, após meditar sobre o Juízo Final, quem se apossa de temor a justiça de Deus, que caiu tão severamente sobre nossos Primeiros Pais, como nós temos visto no serviço do Domingo da Dispensa dos Laticínios – o jejum não será tão terrível. Em vez, entenderá que é necessário para o coração e alma. De boa vontade jejuará e fará prostrações, sabendo que o jejum e arrependimento pelos pecados podem melhor preparar para a solenidade da Ressurreição de nosso Senhor.

Uma Estrofe das Estrofes Posteriores das Vésperas do Domingo da Dispensa dos Laticínios

“Tua graça brilhou, Senhor, mostrou-se e deu luz para nossas almas. Eis que agora é o tempo justo, agora é o tempo para arrependimento. Vamos deixar de lado as obras da escuridão e colocar a armadura de luz, que tendo navegado no grande mar de jejum nós podemos alcançar o terceiro dia da Ressurreição de nosso Senhor, Jesus Cristo, Salvador de nossas almas”.

[1] Ode 4.

Fonte: KATRIY, OSBM, Yulian Yakiv. Conheça o seu rito: o ano litúrgico da Igreja Greco-Católica Ucraniana. Trad. Marco Antônio Pensak, OSBM. Curitiba: Faculdade São Basílio Magno, 2021.